sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Na 'Tecnologia Social', ainda estamos na Era do Bronze

Smartphones, smarTVs, automóveis elétricos. Nanotecnologia, Internet das Coisas (IoT), drones autônomos, Inteligência Artificial (I.A.), Sistemas Integrados (M2M), impressoras 3D. Ressonância magnética em 3D, tomografia, medicamentos efetivos para quase todas as enfermidades conhecidas.

Ano passado fez 50 anos do pouso do homem na Lua e 62 anos do lançamento do primeiro satélite artificial. Em 2020, completam-se 112 anos do lançamento do Ford T, que revolucionaria os meios de transportes e lançaria as bases do consumo em massa. Já se vão 235 anos da criação do tear mecânico e mais de 240 anos do lançamento da máquina a vapor.

A penicilina foi inventada há mais de 90 anos por Alexander Fleming. Há mais de 150 anos, Louis Pasteur obrigava todos os médicos a ferver os instrumentos hospitalares, comprovando sua teoria de que as enfermidades infecciosas são causadas por microorganismos.

Olhando-se para a recente História da Tecnologia, temos a convicção de que a humanidade avançou a passos largos nos últimos 300 anos. Contudo, na "Tecnologia Social", ainda estamos na Era do Bronze, não por coincidência, período em que foram escritos trechos do livro sobre o qual prestam juramento na cerimônia de posse os Presidentes da República da nação mais poderosa do mundo.

No mundo de tantas maravilhas tecnológicas, crianças ainda morrem de fome e inanição, milhões de pessoas não têm moradia e acesso à água. Na era de tantas revoluções no campo da medicina, milhões não têm acesso sequer a medicamentos que foram desenvolvidos há mais de 100 anos, como a penicilina. Em um momento que que as "fashion weeks" determinam o que será vestido na próxima estação, milhões de pessoas não têm roupas, nem calçados.

3.700 anos depois de escrito o Código de Hamurabi, que previa punições rigorosíssimas aos criminosos, expressas na máxima "olho por olho, dente por dente", ainda hoje é senso comum de que o problema da criminalidade pode ser resolvido de forma simples: assassinando-se os criminosos.

Quase 272 anos depois da publicação do "Espírito das Leis" por Montesquieu, as pessoas ainda acreditam que a melhor forma de organização política é aquela em que o poder fica concentrado nas mãos de uma única pessoa.

No ano em que se completa 75 da criação da ONU, a nação mais poderosa e rica do mundo recorrentemente se sente autorizada a desrespeitar os tratados internacionais e assassinar pessoas de acordo com seus interesses geopolíticos.

Até 1990, a homossexualidade era considerada doença pela OMS. E milhares de homossexuais são assassinados em todo o mundo — e o Brasil é lamentável recordista — pelo simples fato de serem homossexuais. Tais assassinatos são influenciados pelas duas maiores religiões do mundo — o islamismo e o cristianismo — que consideram a homossexualidade uma "abominação" e um ato punível com a pena de morte. 

O Deus do cristianismo, por exemplo, destruiu duas cidades (Sodoma e Gomorra) como castigo pela prática das relações homossexuais. E em muitos países islâmicos, ainda hoje, a homossexualidade é considerada crime com pena de morte.

Ainda hoje, muitos países do mundo proíbem que as mulheres tenham acesso à Educação. Malala Yousafzai, então com 15 anos, sofreu uma tentativa de assassinato pelos Talibãs por sua defesa do direito à Educação às mulheres.

Já nos países "civilizados", as mulheres invariavelmente têm rendimentos menores do que os dos homens para executar as mesmas funções profissionais. E ainda são vítimas de agressões domésticas, quando não de feminicídio, preservando sociedades profundamente machistas.

Mais de 130 anos depois da abolição da escravidão dos negros no Brasil (nosso país foi um dos últimos a abolir) e mais de 150 anos depois da promulgação da 13ª Emenda nos EUA, a pigmentação escura da pele causada pelo excesso de melanina ainda hoje é um fator de estigma social. Aqui e nos EUA, a população mais pobre e a população carcerária é majoritariamente formada por negros. Quase 17 anos depois de o Projeto GENOMA ter comprovado cientificamente que a espécie humana é uma só e não é subdividida em raças, o racismo ainda é uma triste realidade em todo o mundo.

Fato é que embora os resultados dos estudos e das pesquisas nas áreas da medicina, engenharia, física, química e biologia se converterem em benefícios tangíveis à humanidade, o mesmo não ocorre com as ciências sociais. Ao contrário, as ciências sociais são recorrentemente atacadas e os resultados dos estudos nessa área frequentemente desmoralizados.

Como explicar tal contradição? Há muitas possíveis explicações e algumas pistas. Talvez a mais óbvia decorra de um fato inexorável: diante do padrão de produção e consumo vigente, não há recursos naturais suficientes para atender aos 7,7 bilhões de habitantes do planeta Terra. 

Os países ricos, conscientes de tal situação, pressionam os países mais pobres para que vendam os respectivos recursos naturais a preços baixos. Ao mesmo tempo em que fomentam distúrbios políticos nesses países para assegurar a fonte contínua de tais recursos. As permanentes tensões políticas em países da África, Ásia, Oriente Médio e América Latina são parte de um processo de hegemonia geopolítica, de estabelecimento de uma hierarquia internacional entre as nações desenvolvidas e as atrasadas — estas relegadas ao permanente atraso.

No âmbito nacional — em todos os países atrasados — uma casta sociopolítica mantém o domínio sobre o restante do povo, assegurando o fluxo contínuo de mão-de-obra barata e relegando-o a condições indignas em função dos salários baixos e com o mínimo acesso aos serviços públicos — quando tem. 

Sob esse ponto de vista, o recente crescimento do discurso da meritocracia cumpre a função de sinalizar a possibilidade de ascensão e sucesso, embora seja uma promessa irrealizável à maioria da população — lembre-se: não há recursos naturais suficientes a todos. E as ciências sociais são "perigosíssimas" ao permitir a difusão de conhecimento às camadas sociais que "precisam" ser mantidas o mais próximo quanto possível da plena ignorância. O que explica essa verdadeira demonização das ciências sociais.

Conhecimento é libertação! Tudo o que as castas sociopolíticas não querem. Oferecem ao povo, assim, substitutos ao conhecimento, tal como a religiosidade fanática — outra fonte de poderio sociopolítico e, lógico, econômico — que assegura o conformismo por uma espécie de provação divina que permitirá uma vida próspera na eternidade, ainda que a vida terrena seja aquém do sofrível.

Portanto, a "tecnologia social" deve permanecer inacessível. Porque ela implica necessariamente em profundas mudanças no sistema de produção e consumo. Para centenas de milhões terem acesso à comida e à água potável, alguns milhões terão de deixar de exaurir os recursos naturais. E esses poucos milhões não estão dispostos a ceder nem mesmo o mínimo, porque isso iria na contramão do que se é ensinado como símbolo de sucesso há pelo menos 300 anos.