sábado, 18 de dezembro de 2021

Por que o rock nacional morreu e hoje o Brasil é o país da música sertaneja e do funk?


Há alguns anos, numa aula de Planejamento Estratégico, eu lecionava sobre "demanda", comportamento do consumidor, preferências, cultura, renda, etc. Expliquei sobre consumo de massa e sobre o porquê do aumento do poder de compra das classes menos favorecidas a partir do Plano Real ter determinado os rumos da cultura no Brasil, principalmente da indústria fonográfica. E que, diante desse cenário, o rock 'n' roll, que padecia no Brasil ainda em fins dos anos 1980, morreria definitivamente na década seguinte.

Por "morrer", leia-se: não faz parte do consumo de massa. Vá a qualquer cidade do Brasil e tente sintonizar uma rádio que toque exclusivamente rock nacional. Você poderá contar nos dedos quantas existem no país. Já rádios que tocam exclusivamente sertanejo, funk, gospel e afins existem às centenas, possivelmente milhares. Nos programas de auditório da TV aberta, sejam locais ou nacionais, raramente se assiste a uma banda de rock, enquanto sertanejo, funk, axé, pagode e afins são dominantes. Vá a uma festa, a um churrasco, a uma confraternização da empresa e preste atenção à trilha sonora. Frequente qualquer espaço público que tenha música e se atente ao que está tocando. A morte lenta e agonizante do rock 'n' roll no Brasil é um fenômeno que ocorreu desde o final dos anos 1980, quando deixou de ter a popularidade que conseguira alcançar do início até meados daquela década para se tornar nicho de mercado desde então.

Daí, um aluno que, como eu, gosta bastante de rock 'n' roll, perguntou:

– Por que o rock 'n' roll morreu no Brasil?

A resposta que proporcionei o deixou perplexo:

– Os próprios roqueiros brasileiros ajudaram a matar o rock 'n' roll no Brasil!

Senão, vejamos: o rock nacional ganhou força a ponto de se tornar produto de consumo de massa no início dos anos 1980, com forte influência do punk rock em bandas como Legião Urbana, Titãs, Ira, Capital Inicial, Plebe Rude, Inocentes, etc. À mesma época, bandas como Barão Vermelho, Engenheiros do Hawaii, Paralamas do Sucesso, Nenhum de Nós e Zero tiveram menos influência do punk rock, embora alguma influência fosse perceptível. Ressalte-se que o consumo de massa à época era restrito à classe média: os LPs custavam caro e as classes menos favorecidas tinham severas dificuldades em comprar os aparelhos toca-discos.

Também restrito às classe mais favorecidas, o rock 'n' roll surgiu no Brasil nos anos 1960, quase pari passu ao surgimento dos ícones do rock inglês, Beatles e Rolling Stones, e dos EUA, Elvis Presley. Àquela época, o rock por aqui tinha o mesmo espírito contestador das próprias origens do estilo musical. Já escrevi sobre isso neste blog em outro momento, você pode acessar aqui, caso queira. Embora eu precise pedir as devidas desculpas por alguns trechos que escrevi então. Farei isso em outro texto.

O crescimento do rock 'n' roll no Brasil nos anos 1960 e 1970 foi sufocado pelo Golpe de 1964, pelo A.I. 5 de 1968 e pelo consequente período de extrema violência contra a cultura – além, logicamente, contra os direitos civis e políticos e contra as minorias. A violência contra a cultura se manifestava de forma inequívoca com a Censura Federal. Como alguns hoje têm enormes dificuldades em entender o que é "censura", vai aqui uma brevíssima explicação: censura é o ato de proibir previamente determinada manifestação cultural, artística, política ou social. Portanto, censura é uma violência de Estado e não tem absolutamente nada a ver com movimentos privados da atualidade pedindo cancelamento em massa contra personalidades escrotas que se acham no direito de achacar minorias combatendo o que classificam como o "politicamente correto".

Se você vivesse sob a censura dos anos 1960 e 1970, seu trabalho artístico seria submetido à análise prévia dos agentes do Estado. Caso entendessem que sua arte era "subversiva", seja lá que diabos isso significasse, você simplesmente não poderia publicá-la. E provavelmente seria detido sem mandado judicial em algum porão para "esclarecer" o que exatamente aquela sua expressão artística significava. Ou seja, basicamente era gente ignorante e estúpida, que não tinha qualquer formação na área, que julgava a qualidade artística de determinada obra, escolhendo de forma doutrinária o que o povo poderia e não poderia consumir como cultura.

Como o rock dos anos 1960 e 1970 continha tal espírito contestador, era "natural" que a ditadura tentasse sufoca-lo como movimento cultural. Bandas como Os Mutantes, Secos & Molhados, a tropicália de Caetano e os Novos Baianos, que fazia fusões do rock 'n' roll com samba e baião, o inigualável Raul Seixas, passando por bandas que possivelmente você nunca ouviu falar como Casa das Máquinas, O Som Nosso de Cada Dia, O Terço e Vímana (pesquise!!!), todos convidavam aqueles que os ouviam a uma "perigosa" reflexão política, social e até existencial. E isso incomodava a ditadura.

Mesmo o rock fofinho da Jovem Guarda foi inicialmente considerado subversivo: Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléa, Vanusa, Ronnie Von, Jerry Adriani, The Fevers... Todos em algum momento foram considerados "contra a moral, os bons costumes e a família" por algum burocrata da Censura Federal. Posteriormente, entenderam que era "melhor" deixar os jovens sonharem com amor do que refletirem sobre as iniquidades do Brasil. E foi assim que caíram no gosto da "família tradicional brasileira".

Quando o punk rock surgiu na Inglaterra em meados dos anos 1970 abordando abertamente a frustração da juventude de então com os problemas socioeconômicos daquele país, tratava-se muito mais de um movimento político do que musical. Inegavelmente, a musicalidade do punk rock era pobre: três acordes (no máximo), guitarras "sujas" com bastante distorção, batida simples, rápida e com pouca variação, vocal com pouquíssimas notas musicais, eventualmente gritadas, no entanto, com letras bastante contestatórias. Mais do que música, o punk queria justamente falar com a linguagem própria dos jovens sobre os temas que os agonizavam: desemprego, drogas, guerras, criminalidade... E foi justamente essa simplicidade musical associada à riqueza cultural e política que projetou o punk rock da Inglaterra para o mundo. Aterrissou no Brasil em fitas K7 – o torrent da época – escondidas nas malas dos filhos de uma elite conservadora que os mandava estudar na Europa para ter acesso a um sistema educacional "melhor" – curioso "paradoxo", não?

Em terras brasilis, o punk rock explodiu como potencial consumo de massa paralelamente à reabertura política durante o fim da Ditadura Militar e, portanto, diante de forte pressão popular pela extinção da Censura Federal e de um sentimento de "libera geral"! Penetrou diretamente nas principais capitais: São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, não sem também ter presença marcante nas capitais gaúcha e mineira. Mas foi na capital paulista que os roqueiros começaram a implodir o rock nacional como movimento que poderia se tornar consumo de massa. Explico:

No início dos anos 1980, os shows de punk rock estavam a mil na Pobre São Paulo! Os punks da periferia reuniam-se em shows antológicos que projetaram algumas ótimas bandas no cenário cultural, enquanto o punk rock da metalurgia do ABC, principalmente oriundo de São Bernardo, fazia shows igualmente bons em paralelo. Logo, a ideia óbvia: por que não unir os dois movimentos? Tinha tudo para dar certo! Só que não! Em vez de "lutarem contra o sistema", aquilo que estava no cerne do movimento punk rock britânico, passaram a brigar entre si como torcidas fanáticas de futebol. A ponto de serem proibidos tais festivais. Uma fantástica manifestação cultural, agora, era sufocada com a "legitimidade" do discurso em prol da segurança pública.

Mas, justiça seja feita, não foram os punks brigões que mataram o rock. Afinal, algumas poucas bandas oriundas desses movimentos ganharam projeção nacional, a ponto de frequentar o horário nobre da maior rede de TV aberta. A partir de tal êxito – restrito a poucos –, artistas e produtores contaram vil metal (sim, Belchior compôs e Elis Regina imortalizou a descrição clichê), ganharam fama nacional e se trancaram no sucesso.

Para piorar, foram estabelecidos novos "parâmetros" impostos pela indústria fonográfica brasileira, a qual projetou, no lugar do punk rock, bandas "fofinhas" como Blitz, Metrô, Biquíni Cavadão, Ultraje a Rigor, Kid Abelha, Erva Doce, RPM, Rádio Táxi, além de alguns astros do rock nacional como Lulu Santos, Lobão e Marina Lima. Não se ouvia mais a "sujeira" das guitarras, nem as letras provocativas e contestatórias características do punk rock, muito menos os riffs e os solos das guitarras das bandas clássicas que poderiam resgatar a essência pelo movimento musical em si. No lugar de tudo isso, o "tecladinho" irritante típico dos anos 1980, a quase ausência de guitarras e contrabaixos, a presença da igualmente irritante bateria eletrônica, letras entre românticas e piadinhas de duplo sentido e o visual adaptado do punk ao colorido peculiar àquela década (sem julgamentos). Ou seja, transformaram o rock nacional em modinha, em um movimento marcado e efêmero, algo parecido com aqueles grupinhos de adolescentes que dançavam e cantavam como os Menudos (sem julgamentos). E, ao ser transformado pela indústria fonográfica num movimento transitório, perdeu a capacidade de se tornar um fenômeno clássico, exceto por saudosistas da época e uns sem-noção que ouvem RPM e acham que estão ouvindo Deep Purple.

Essa modinha do "rock" dos 80's (aspas para "rock", sim) gerou uma casta de "roqueiros badalados e famosos". E, para esses "novos ricos do rock nacional", não se poderiam deixar outros ocuparem o espaço que conquistaram a duras penas. Até porque havia então o monopólio de quem determinava quais artistas fariam sucesso – que eram aqueles que tocavam nas telenovelas –, salvo uma ou outra exceção. Assim, quaisquer outras bandas e/ou músicos que não faziam parte do mainstream e que começavam a ganhar projeção passavam a ser vistas não como alguém poderia ajudar a perpetuar a cultura do rock, mas, sim, como concorrentes. Se não eram abraçados pelo "monopólio da cultura", eram deixados à míngua até a extinção, porque os "rock stars brazucas" não se empenhavam minimamente em ajudá-los. Exagero? Façamos o comparativo com músicos dos estilos de maior sucesso da atualidade: sertanejo e funk.

Vejamos como se comportam os cantores sertanejos famosos: quando uma dupla desconhecida começa a ganhar projeção, são abraçados por quem já está na mídia. Abrem shows, eventualmente dão uma palhinha no próprio show principal, passam a ser regularmente citados como referência de renovação... Ou seja, são apadrinhados pelos famosos que sabem que o próprio sucesso é transitório, mas que poderá ser relembrado pelas novas gerações se houver uma cultura propícia a isso. Assim, todos ganham: com a perpetuação da cultura sertaneja (ou sertanejo universitário, ou sertanejo da balada – sei lá, não entendo e não faço questão de diferenciar o "nejo" do momento), com a coprodução de novos álbuns, com vendas em plataformas digitais e, lógico, com shows, propaganda e direitos de reprodução em rádio e TV. O que propicia a todos um fluxo de renda contínuo com direitos autorais. Isto é, o sertanejo torna-se um movimento cultural permanente que consolida ao redor dele toda uma estrutura empresarial, na qual vale muito a pena investir, já que o retorno sobre investimento é líquido e certo, dada a cadeia de produção economicamente viável que se erigiu ao redor de tal cultura. Por isso muitos roqueiros abandonaram o rock e encontraram o ganha-pão no sertanejo, mesmo sem projeção nacional – não os julgue!

Já o funk fez um movimento periférico, mas alcançou resultado similar, tornando-se viável economicamente. Nas favelas e nas periferias em geral, o funk surgiu relatando a situação socioeconômica das localidades: sexo promíscuo, tráfico de drogas, violência policial, exclusão social, racismo... Algo parecido com o que aconteceu com o punk rock na Inglaterra e que, à época, também sofria profunda discriminação dos "cultos" de então. Assim, o funk retrata a realidade das comunidades com linguagem própria do meio, com aquilo que lhes é possível ter acesso, favorecido pela massificação do acesso à tecnologia que permite artistas independentes produzirem música em casa, mesmo que a musicalidade, em si, seja muito pobre. O funk externou o desejo dos jovens pretos e pardos tradicionalmente excluídos de participarem dessa sociedade consumista, de ostentar, de fazer seu "rolezinho" nos shoppings, de namorar, fazer sexo livre... Aí, os narizes mais sensíveis se torcem e discriminam o funk classificando-o como "cultura inferior", "esquecendo-se" que se as escolas a que essas comunidades têm acesso estruturalmente não conseguem sequer ensinar o básico, o que dirá de fundamentos de música e poesia!

Só para deixar claro: não existe "cultura inferior" e "cultura superior". Cultura, na acepção literal do termo, significa aquilo que é cultuado pelos grupos sociais. O jazz, que hoje é tido como um estilo musical hermético e nobre, já foi considerado subcultura no século 19. O choro, que é pai do samba, idem – inclusive, já foi tratado como caso de polícia, assim como muitos hoje gostariam que fosse tratado o funk. "Ein, mas a letra é chula"... Queridinho: James Brown cantava que era uma "máquina de sexo" em 1970 e hoje é considerado cult.

Mesmo o rock 'n' roll, antes de ser heliporto de bandas neonazistas e/ou supremacistas, já foi considerado subversivo, subcultura, música ruim e letras de baixo nível. É claro que se você ouvir "The Dark Side of the Moon" do Pink Floyd vai achar uma obra prima do mesmo nível de uma sinfonia de Beethoven. Mas pergunte a um músico erudito formado em conservatório se ele pensa isso – provavelmente rirá da sua cara!

Se outrora o rock 'n' roll apregoou nos anos 1960 e 1970 a liberdade do "faça amor, não faça guerra", hoje, senhores brancos grisalhos de meia-idade passaram a reinterpretar a "liberdade" como apologia ao fim do Estado de bem-estar social que visa justamente tentar mitigar as injustiças sociais causadas pelo "sistema". O sujeito dessa "nova revolução" acha que rock 'n' roll é andar de Harley-Davidson com armas na cintura atirando em pretos pobres e na comunidade LGBTQIA+, defendendo Estado mínimo, a precarização do trabalho e a instituição da lei do "cada um por si". A liberdade Easy Rider agora é ser anarcocapitalista. É dessa "nova revolução cultural" que surgem figuras surreais como os "punks conservadores", contra o "sistema opressor" que quer cobrar impostos dos mais ricos para fazer um sistema educacional universal e de boa qualidade, para assegurar o acesso de toda a população à saúde pública e garantir aposentadorias condignas às classes menos favorecidas. Vai entender!

O rock 'n' roll no Brasil incorporou como nenhum outro movimento cultural no país esse individualismo exacerbado, a ponto de matar a própria essência. A ponto de inviabilizar que artistas que não estejam na grande mídia vivam do rock autoral. Mesmo com as plataformas digitais que, em tese, permitem a democratização da música autoral, só quem consegue auferir renda suficiente com esse meio são os artistas consagrados do rock. Diferentemente do que acontece em países como EUA e Inglaterra, onde são organicamente criados espaços e meios para as novas gerações a partir da cultura local, porque se entende que é a renovação que possibilita a continuidade da cultura. Por isso, artistas consagrados apoiam os novos talentos, eventualmente permitindo que abram seus shows, ocasionalmente até os convidando para que participem dos seus próprios shows. Isso potencializa o marketing para todos envolvidos e, assim, todos ganham. Ou você acha que aquele garoto que subiu ao palco para tocar Metallica no show do Foo Fighters surgiu ali por acaso, por uma dessas coincidências do destino? Aquilo foi um brilhante golpe de marketing que viralizou nas redes sociais e impulsionou tanto o Metallica como o Foo Fighters. Consegue pensar em algo parecido acontecendo aqui no Brasil?

Os roqueiros brazucas são a categoria cultural mais brutalmente desunida! Para começar, vivem enfatizando os defeitos das outras bandas para vender a ideia de que somente a própria banda é maravilhosa. Não perceberam que o público que consome em massa, que entende o básico de música, não quer saber dos detalhes técnicos da banda, nem se o baterista consegue fazer repiques com os pedais do bumbo, ou se o guitarrista consegue tocar 5 ou 50 notas por segundo, tampouco se a música tem 3 ou 30 acordes. Música, em qualquer era, antes de tudo, expressa um sentimento! Sentimento que perpassa do indivíduo para o coletivo, para o grupo social no qual o indivíduo está inserido. Ou seja, é algo que vem muito mais da emoção de quem compõe do que dos aspectos cognitivos matemáticos contidos nos elementos da física acústica.

Se a música conseguir produzir sentimento para determinado grupo social a ponto de potencializar o consumo de massa, bingo! Suscita-se um "produto" que gera engajamento, vendas, economia de escala e... Lucro! Querendo ou não, gostando ou não, é o lucro que movimenta o sistema, não a qualidade técnica da música. Se fosse pela qualidade técnica, música erudita seria a expressão máxima da cultura, em vez de ter morrido anos 1940 como consumo de massa.

A "fórmula", enfim, é simples: do sentimento individual ao grupo social, da geração de um "produto" minimamente viável ao desenvolvimento de uma cultura que permita o consumo de massa, que edifique uma cadeia de produção, a qual consolida economia de escala e lucros que remunerem o capital investido e, por conseguinte, os artistas que da cultura vivem e obtêm renda condigna. No Brasil, os sertanejos e os funkeiros conseguiram, porque criaram um tipo de sentimento musical que dialoga com as massas.

Já os roqueiros brazucas não querem saber das massas, porque se consideram "a elite da música". Não entenderam as regras do jogo. Bandas desconhecidas só conseguem destaque na mídia e participação em megashows se os integrantes são neonázis financiados pela própria empresa que presidem. Os demais roqueiros brazucas independentes têm um comportamento padrão: depreciam os demais gêneros musicais para se sentirem superiores, não se ajudam mutuamente e não se organizam minimamente para recriar a cultura do rock como movimento coletivo e que potencializaria o consumo de massa no longo prazo. Enquanto individualmente ganham (quando conseguem) duzentão para tocar na night, ou então têm um "trabalho de verdade" para poder se sustentar e lançam música própria em plataformas digitais como hobby. Entendeu agora por que o Brasil é o país da música sertaneja e do funk?