segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Sobre Anitta e Pabllo Vittar: está reclamando do quê?

Bem. Para ser honesto, antes de tudo, declaro que detesto música sertaneja atual, axé e funk pancadão. Agora, para não cair no cliché da "qualidade musical", prefiro fazer uma análise socioeconômica. Para começo de conversa, no Brasil (dados de 2015), há cerca de 56,2% da população com 25 anos ou mais que têm apenas o ensino fundamental completo. [1] Quer dizer, vivemos em um país com uma população primordialmente de baixa escolaridade.


O Brasil alcançou a universalização do ensino fundamental e médio no final da década de 1990. À mesma época, a Música Popular Brasileira passou por um inequívoco ponto de inflexão. Tal ponto de inflexão é razão direta do aumento do poder de compra que a estabilidade pós Plano Real concedeu às classes menos favorecidas. Estas puderam ter acesso a uma gama de bens de consumo que antes era apenas privilégio da classe média e das mais ricas. Por exemplo, passaram a ter acesso facilitado a aparelhos de som e vídeo, a comprar CDs, fitas de vídeo e DVDs.

Isto é, passaram a consumir cultura em larga escala! E a maior escala da produção de cultura, que até a década de 1990 era direcionada à classe média, passou então a ser voltada justamente para as classes de menor escolaridade, mas que passaram a ter massa salarial para se tornarem prioritárias. Ademais, o advento da internet levou a massificação da cultura a um outro patamar. Hoje, quem chega aos grandes meios para oferecer economia de escala pode fazê-lo por meio do YouTube, por exemplo. Exatamente como foram os casos de Anitta e Pabllo Vittar.

Para as empresas de grande porte que exploram esse mercado, o número de views do YouTube jogou a ZERO o custo de pesquisa de mercado outrora feita ad hoc com eventuais lançamentos fracassados e dinheiro desperdiçado. Em outras palavras, quando um alguém - artista ou não - chega aos grandes meios de comunicação e entretenimento hoje, as empresas que passam a investir nessas carreiras já sabem que há público garantido em função de carisma testado e aprovado. Portanto, o retorno sobre o investimento é líquido e certo - altos ganhos com baixo risco.

Ou seja, enquanto milhões de indignados da classe média rosnam com a indicação de Anitta como mulher do ano pela revista GQ e de Pabllo Vittar ao Prêmio Multishow, xingando o Brasil e os brasileiros por possibilitarem tais "absurdos", há meia dúzia de empresas gigantescas lucrando bilhões com artistas do padrão Anitta e Pabllo Vittar! E são essas empresas que, ao mesmo tempo em que alimentam tais artistas, praticamente inviabilizam qualquer alternativa que muitos julgariam ter "melhor qualidade artística" de ocupar espaços, ainda que nichos de mercado, na grande mídia.

Por quê? Porque a qualidade é inversamente proporcional à economia de escala! Bingo! Voltamos ao 3° e 4° parágrafos! A classe média passou décadas sendo conivente e/ou complacente com a precarização das políticas públicas educacionais no Brasil para as classes menos favorecidas! E agora que os efeitos dessa precarização chegam aos ouvidos ficam chateadinhos?

Gente! Para gerar economia de escala, é preciso falar a linguagem que os 100 milhões de brasileiros com pouca ou nenhuma instrução entendam. Nesses termos, poesia rebuscada, letras profundas, acordes e riffs elaborados e erudição musical são um veneno para lucrar com a cultura das massas. Não vende! A menos que haja uma profunda mudança no tratamento das prioridades em termos de Educação e Cultura - coisa que não está acontecendo agora e não há sinais no horizonte de que aconteça nos próximos anos - infelizmente a tendência é piorar. E muito!

Houve quem imaginasse que depois de Tchan e Bonde do Tigrão não haveria nada de pior. Não somente está piorando, como está criando uma economia cada vez mais sólida em redor. Tenho colegas, ótimos músicos, que abandonaram o rock para tocar música sertaneja. E estão financeiramente muito bem. Como jamais estariam se tivesse insistido no caminho do rock. Assim como há milhões de excelentes músicos que tentam diariamente salvar o samba de raiz, a bossa nova, a música sertaneja da viola caipira, o jazz, o blues e o soul brasileiros e acabarão fazendo um freela para algum big shot da música sertaneja.

Ou como há milhares de músicos eruditos que eventualmente farão "o fundo musical" quando algum artista do mesmo naipe de Anitta e Pabllo Vittar resolver fazer um álbum acústico. Isso se esses músicos não quiserem morrer de fome. Ou, o que é mais provável, abandonam o sonho de viver profissionalmente da música para trabalharem algum "emprego sério", enquanto fazem música apenas como hobby.

Já que o mercado cultural no Brasil praticamente gira em torno de uma única empresa, ninguém deveria estar espantado com a qualidade do que é empurrado goela abaixo da população. Em um país em que a livre concorrência dos meios de comunicação é folclore, já que as empresas financiam políticos - a maioria dos quais donos de estações de rádio e TV em seus feudos - para garantir seus monopólios, você esperava o quê? O que vivemos é a conjunção perfeita entre um povo que não prioriza nem a Educação nem a Cultura no tocante às questões sociais, bem como se omite perante a brutal concentração de poder econômico em todos os segmentos - o setor de entretenimento é apenas mais um.

Então, não se pergunte: "onde estão os bons músicos deste país"? Porque a resposta é óbvia: os que não desistiram estão fazendo sucesso no exterior.
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