Não. Não escrevi errado. A pergunta é essa mesmo: você é contra ou a
favor da legalização do divórcio? Fiz essa pergunta provocativa nas
redes sociais* e as respostas foram as mais variadas. Alguns entenderam a
analogia, para outros a palavra "legalização" passou despercebida e a
resposta foi simplesmente sobre o divórcio. Curiosamente, ninguém se declarou
contra o divórcio.
* Veja as respostas: Você é contra ou a favor da legalização do divórcio?
O Brasil foi um dos últimos países do mundo a legalizar o divórcio.
Ainda que a frase "até que a morte os separe" muitas vezes não fosse
levada à risca, somente após a Lei nº 6.515 de 1977 foi possível a muitas
pessoas regressar à legalidade, já que até então o Código Civil não permitia a
separação. Se houvesse redes sociais em 1977, com certeza teriam sido inundadas
de críticas à legalização do divórcio como uma aberração e um atentado contra a
família.
A Lei nº 6.515/77 foi um inequívoco avanço. Embora à época a
igreja católica tivesse bradado contra sua aprovação, alegando que era um
atentado contra a família, na prática a lei concedeu um direito importante aos
cidadãos, especialmente às mulheres.
Uma mulher que fosse abandonada pelo marido praticamente se
tornava um zumbi social. Carregava o estigma pelo resto da vida,
independentemente de ser ou não responsável pela separação. E, pior, caso
tentasse reconstruir a vida amorosa com outro homem, ela era literalmente uma
criminosa, já que legalmente estava casada e o então Código Civil tratava o
adultério como crime – ainda que a mulher já estivesse separada na prática. Ou
seja, a lei sempre era a favor do homem e contra a mulher.
Há algumas décadas, mulher separada era estigmatizada pelo resto da vida. E se tentasse reconstruir a vida amorosa era criminosa, uma vez que o Código Civil tratava o adultério como crime! |
Assim, o homem casado e sexualmente insatisfeito podia frequentar livremente os
prostíbulos sem qualquer questionamento social. Pelo contrário: havia até certo
apoio tácito por parte da sociedade. À mulher, era reservado o
"direito" de permanecer calada, oprimida e muitas vezes espancada
pelo cônjuge.
O homem casado podia frequentar livremente os prostíbulos para satisfazer as vontades sexuais. Havia até certo apoio tácito por parte da sociedade quanto a esse "direito". |
Hoje, ninguém questiona a legalidade do divórcio. Ainda que
dentro da igreja católica a prática ainda seja considerada pecaminosa, do ponto
de vista dos direitos civis, o direito ao divórcio hoje é intocável e
inquestionável. Igrejas protestantes aceitam o divórcio. Aliás, uma das razões
da existência do protestantismo é exatamente a interpretação sobre o direito ao
divórcio. Henrique VIII, então rei da Inglaterra no século 16, rompeu com o
papado católico para conseguir se divorciar, fortalecendo as bases da igreja
protestante anglicana.
Henrique VIII rompeu com a igreja católica em 1527 para se divorciar de Catarina de Aragão |
Se o pastor Everaldo, que hoje brada supostamente em favor da
família, vivesse antes do século 16, por certo seria condenado exatamente por atentar
contra a família, já que o pastor é divorciado. Hoje, o mesmo pastor Everaldo trava
uma espécie de cruzada contra a união civil entre pessoas do mesmo sexo. Veja
bem: união CIVIL. Não união religiosa.
Pastor Everaldo diz defender a família. Se vivesse no século 15, ele, que hoje é divorciado, seria acusado de atentar contra a família. |
Assim como o divórcio é condenado pela igreja católica, já
que "o que Deus uniu, o homem não separa" – seja lá o que quer dizer
essa frase, já que não se tem notícia de que Deus tivesse aparecido pessoalmente
para celebrar um matrimônio – o casamento de pessoas do mesmo sexo é condenado
pelas igrejas cristãs, islâmicas e judaicas. Certo. Até aí, nenhum problema.
Afinal, religiões tratam-se de CRENÇAS e cada um tem o direito de acreditar
naquilo que quiser.
Agora, do ponto de vista dos direitos CIVIS, cada um tem o
direito de fazer da própria vida sexual aquilo que bem entender, desde que as
partes envolvidas estejam de comum acordo. Considerando-se que vivemos em um
Estado laico, não tem sentido a intervenção das igrejas nos direitos civis. A
sociedade e a lei devem respeitar a vontade individual das pessoas. Porque,
querendo a igreja ou não, pessoas do mesmo sexo continuarão a se unir afetiva,
sexual e conjugalmente. Negar-lhes esse direito é equivalente a negar o direito
civil ao divórcio – fato que hoje ninguém questiona.
Ninguém quer obrigar as igrejas a aceitar o matrimônio religioso entre pessoas de mesmo sexo. Mas o casamento CIVIL homoafetivo deve ser um direito inegável, tanto quanto o divórcio hoje é. |