Parece que entramos em uma máquina do tempo e estamos revivendo o
período da Guerra Fria. Recentemente as redes sociais estão inundadas de
mensagens defendendo ou criticando posições supostamente "de direita"
e "de esquerda". Mensagens essas que trazem consigo preconceito e
desinformação, alimentando o ódio mútuo, não somente desnecessário, mas
principalmente perigoso para o país. Mas o que é "ser de direita" e
"ser de esquerda" na essência das expressões?
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: na sessão do dia 26/08/1789 cunharam-se os termos "Direita" e "Esquerda". Fonte: UOL, 2014. |
Os termos foram cunhados no auge da Revolução Francesa, na sessão do dia 26 de agosto de 1789, que aprovou a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", um dos marcos da democracia contemporânea – que curiosamente já nasceu com uma separação. No ato da promulgação, a aristocracia da alta burguesia – girondinos – estava sentada à direita do presidente da Assembleia e os representantes da baixa burguesia e dos trabalhadores – os jacobinos – sentavam-se à esquerda.
Assim, a origem das expressões retrata, à direita, a defesa da manutenção
de privilégios e poderes, ao passo que, à esquerda, a luta por avanços na
concessão de benefícios aos trabalhadores. No entanto, o surgimento do marxismo em meados do século 19 e o avanço
do liberalismo econômico em fins
daquele século passaram a traduzir uma nova simbologia aos termos
"esquerda" e "direita", sem, contudo, perder a relação com
a gênese de seus significados.
O liberalismo econômico
tem como marco teórico as escolas utilitaristas e neoclássicas. Essas escolas
de pensamento têm, como fundamentos, a liberdade e o direito individuais e a
garantia da propriedade privada. Asseguradas a propriedade privada e a livre
iniciativa, as decisões de produção são tomadas de acordo com a livre vontade
dos agentes econômicos. Esta é a
essência do capitalismo: as decisões de produção tomadas individualmente na
esfera privada. Cada indivíduo, agindo em defesa dos próprios interesses,tomará
as decisões mais racionais, maximizando os ganhos próprios e minimizando os
gastos – o coração da lógica de maximização dos lucros.
Quem é "de direita", provavelmente acredita que a livre concorrência é um mecanismo
eficiente de propiciar ganhos para a sociedade. A busca por aumento de produtividade leva a uma redução dos
preços ao consumidor, o que possibilita à população como um todo o acesso a uma
gama cada vez maior de produtos e serviços. E quando a tecnologia passa ser um fator central na conquista da concorrência,
isso potencializa que a sociedade tenha bens de consumo de melhor qualidade.
O marxismo enxerga o
modo capitalista de produção como um sistema de exploração. Na visão de Karl
Marx, o capitalismo empreende uma busca desenfreada por lucros cada vez maiores.
O lucro tem origem na mais-valia, que consiste no trabalho executado, mas não
pago. No processo produtivo, a empresa remunera o trabalhador pelo valor mais
baixo que puder, enquanto exige que este trabalhe o maior número de horas por
dia. Em meados do século 19, os trabalhadores ingleses trabalhavam 12, 14 ou 16
horas por dia, sem direito a alimentação, descanso ou um salário condigno –
lembre-se: à época, tudo isso era decidido pela "livre negociação".
Aqueles que se declaram "de esquerda" certamente serão a
favor de que os lucros obtidos sejam
melhor redistribuídos. E que os trabalhadores tenham direitos assegurados, tais
como o limite máximo da jornada de trabalho, intervalos para alimentação, descanso
nos fins-de-semana, férias e aposentadoria, dentre outros.
O leitor talvez se surpreenda em perceber que as posições talvez
não sejam tão extremas assim. É possível coexistir o lucro e os direitos
trabalhistas? Alguém, em sã consciência, poderia questionar que é necessário
ter limites regulamentados pelo Estado quanto à jornada de trabalho, férias e
aposentadoria? Essas garantias mínimas ferem o espírito empreendedor que tantos
benefícios têm gerado à sociedade? Mais do que isso: será que todos os serviços
prestados no sistema econômico devem necessariamente visar o lucro?
Quem defende o acesso a serviços públicos básicos, como Educação e
Saúde, está defendendo uma das bandeiras "da esquerda". E isso não
significa se transformar em uma Coreia do Norte. Ou seja, não é necessária uma
ditadura restritiva às liberdades individuais para que a sociedade como um todo
tenha acesso a direitos básicos, tanto em termos de serviços públicos, como
alguns produtos essenciais, tais como alimentação e vestuário.
A Europa já percebeu isso há muito tempo – principalmente os
países nórdicos. O equilíbrio entre as forças empreendedoras de mercado e o
Estado de bem-estar social foi o que possibilitou o que a humanidade persegue
há milênios: trabalho condigno e qualidade de vida. Não há por que não
adotarmos tal princípio.