Estou em um
centro de recuperação de dependentes químicos da cidade de São Paulo para
conversar com Carlos (pseudônimo de C. L. M.). O jovem de 29 anos que é viciado
em crack e cocaína. Ele adentra a sala de visitas e eu me espanto
com a visão do rapaz. Parece ter uns 45 a 50 anos – envelhecimento precoce
causado por anos de imersão no mundo das drogas. HIV positivo por se prostituir
na fase mais degradante do vício e decidiu procurar ajuda depois de ser
duramente espancado por skin heads na
Praça da República.
C.L.M no centro de recuperação. |
Está pela
primeira vez no centro de recuperação. Articulado e aparentemente sereno, é
completamente diferente daquele estereótipo do viciado em crack que permeia o imaginário do brasileiro médio. Carlos é loiro
de olhos verdes, tem formação universitária e passou a adolescência viajando
com os pais pela Europa, Estados Unidos, Austrália, fala inglês, espanhol,
alemão e francês fluentemente.
Triste ironia:
o pai trabalha no Escritório das
Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Em viagens pelo mundo, defendera
o combate ostensivo às drogas. Em suas palestras, sempre tratou as drogas como
um misto de caso de polícia com desestruturação familiar e falta de informação.
Carlos tinha uma família bem estruturada e a suposta informação não faltou.
Como, então, Carlos enveredou por esse caminho sem volta da dependência química
de uma droga tida como "ralé", droga de pobre, droga da periferia?
É por isso que estou aqui. Carlos tem uma visão sobre o próprio vício tão clara e racional que parece que ele fala de outra pessoa. Clareza que nos faz duvidar de que ele realmente seja um viciado. Mas é.
Pergunto inicialmente se ele está bem, se está disposto a conversar. Ele sorri e diz: "quero que o máximo de pessoas saiba da minha história para não cair na mesma armadilha que caí". Carlos se senta e a entrevista começa.
Pergunta. Quero começar com uma pergunta
meio óbvia. Você, quando adolescente, viajou o mundo. Esteve nos EUA, na
Austrália, na Europa... E, na Europa, esteve em Amsterdã (Holanda), onde as
drogas não são ilegais. Você usou drogas em Amsterdã?
Carlos. (Risos). Não, não. Sempre tive
medo das drogas, desde criança, por causa do meu pai, da função que ele exerce
na ONU. Quando estive em Amsterdã eu tinha apenas 15 anos, vivia meio preso em
casa. Jamais teria a curiosidade de experimentar algo naquela época.
Pergunta. O que seu pai pensa sobre a
política da Holanda, de Portugal, da Suíça e de outros países que passaram a
dar um tratamento menos policial, digamos assim, em relação às drogas?
Carlos. Bem, até uma das últimas vezes que
eu tive contato com ele, meu pai sempre teve uma posição muito dura com relação
às drogas. Já o ouvi dizer que no longo prazo as políticas públicas mais
"lenientes" – essa é a palavra que ele sempre usava – adotadas por
alguns países na questão das drogas levarão a humanidade inteira à ruína. Ele
sempre fez discursos comparando os traficantes e as máfias ligadas ao narcotráfico
com terroristas, bandidos, assassinos, estupradores e outras coisas parecidas.
Pergunta. E o usuário?
Carlos. Há muitos anos tinha uma campanha
na TV que dizia algo do tipo: "quem compra drogas, financia a
violência". Meu pai estava no comitê que desenvolveu essa campanha. Embora
em público ele fosse mais light, em
casa ele falava que o consumidor de drogas era – e essas eram as exatas
palavras dele – "tão bandido como o traficante". Se dependesse de meu
pai, hoje, provavelmente eu estaria cumprindo pena em uma penitenciária, ao
invés de estar me tratando em uma clínica de recuperação paga com dinheiro
público. Aliás, ele achava – ou ainda acha, não sei – um absurdo o Estado
"desperdiçar" dinheiro com pessoas que entraram nessa porque
quiseram. Na visão do meu pai, eu represento um desperdício para a sociedade.
Pergunta. E você? Como entrou nessa?
Carlos. Por incrível que possa parecer, a
minha primeira "infração" foi um cervejada quando entrei na
faculdade...
Pergunta. Cerveja é uma infração?!
Carlos. (Gargalhando). É... Meu pai não vê
diferença entre heroína, crack,
cocaína, maconha, tabaco e álcool. Para ele, é tudo droga.
Pergunta. Entendi. Mas por que você acha que
essa cervejada foi a causa de tudo isso?
Carlos. Todos dizem que a porta de entrada
para drogas pesadas é a maconha. Para mim, a maconha foi a segunda porta. Ficar
bêbado numa cervejada de calouros, para mim, foi uma coisa do outro mundo. Eu
me senti um verdadeiro bandido no dia seguinte. A ressaca... A ressaca moral
(risos). Parecia que eu tinha esfaqueado meu pai pelas costas. Esse era o
sentimento: traição.
Pergunta. E você começou a beber com
frequência?
Carlos. No início, eram as festas de
quinta-feira, aos sábados nas baladas... Mas quando eu estava no terceiro ano
da faculdade, já estava bebendo quase todos os dias.
Pergunta. Só cerveja?
Carlos. Cerveja, vodca, uísque... Tudo o
que tinha...
Pergunta. Você ficava embriagado todos os
dias?
Carlos. Na verdade, eu raramente chegava a
ficar embriagado. Esse é um ponto crucial: eu geralmente bebia só até o ponto
em que eu conseguia ficar um pouco mais solto para conversar com as meninas,
fazer amigos. Na minha cabeça, estava muito claro isso: eu tinha o controle dos
meus atos! Sempre detestei a ideia de não ter controle da situação. Eu tinha sempre
que ter pleno controle! Tirando aquele primeiro dia da cervejada – e olha que
eu nem bebi muito...
Pergunta. Não?
Carlos. Não! De jeito nenhum! Se eu bebi
uma garrafa foi muito. Mas como eu não estava acostumado, subiu rápido.
(Risos). Passei mal para caramba! Vomitei! Passei vergonha!
Pergunta. Então você começou a beber por
timidez?
Carlos. Ah, sim! Eu era extremamente
tímido! Mal conseguia olhar nos olhos de uma mulher. Agora, com três cervejinhas
eu era o cara mais sociável do mundo! Todo mundo me adorava. E, como no início
eu não bebia todos os dias, as pessoas achavam estranha a minha seriedade de
segunda a quinta-feira. Aí, comecei a beber quase todos os dias. Isso não me atrapalhava
de forma alguma: conseguia estudar, tirar ótimas notas... O álcool nunca me
atrapalhou.
Pergunta. E quando você fumou maconha pela
primeira vez?
Carlos. Puts. Esse dia foi foda! Eu estava
em uma festa numa república em novembro 2007, lembro perfeitamente, porque foi
uma semana antes de um feriado de seis dias entre a Proclamação da República e a
Consciência Negra. Eu já tinha tomado algumas e estava mais solto. Então, um
colega de um amigo meu que estava na roda conversando perguntou: "topam um
base"? Eu fiquei completamente
apavorado! Uma coisa é álcool, outra coisa é uma droga ilícita! Até o beque
chegar nas minhas mãos, eu travei uma batalha interna gigantesca comigo mesmo
entre o medo de perder o controle dos meus atos e ser taxado como careta pelos
meus amigos. E aí, chegou a minha vez. Eu pensei rápido: puxei e soltei o mais
rápido que eu pude. Segurei para não tossir – não queria passar vergonha na
frente dos amigos.
Pergunta. E deu algum barato?
Carlos. Não... Demorei a ter alguma sensação
com a maconha. A primeira vez que pus na boca eu tinha 23 anos. Eu fumei
maconha com alguma regularidade até os 25 anos. E me lembro o dia em que
"bateu" pela primeira vez. Eu estava em outra festa e tinha bebido
além da conta, quando passaram um beque. Nesse dia eu puxei com tudo.
Pergunta. E qual foi a sensação?
Carlos. Puts! Sensacional! Eu me sentia
leve! Ria que nem um retardado. Eu ri tanto que fiquei até com cãibra no
maxilar. O pessoal pensava até que eu tinha usado alguma coisa mais pesada. Mas
era a maconha. E naquele dia eu senti que a maconha era muito mais eficiente do
que o álcool. Eu ficava tão sociável quanto, só que sem ressaca, sem hálito de
bebida e o melhor: eu conseguia manter o pleno controle dos meus atos. Foi aí
que comecei a comprar maconha regularmente. E essa foi a porta do inferno.
Pergunta. Por que você acha que a maconha
foi a porta do inferno?
Carlos. Porque quem vende maconha é o
mesmo cara que vende cocaína, crack,
às vezes heroína... E tudo mudou quando cheirei
minha primeira carreira de cocaína.
Pergunta. Como foi a primeira vez que você usou
cocaína?
Carlos. O cara de quem eu comprava sempre
tentava me empurrar cocaína. Ele fazia todo tipo de discurso, da rebeldia
contra a sociedade consumista, da libertação, da sensação de poder... Sempre me
oferecia: "experimenta, só para você ver". Um dia eu estava bêbado e usei
ali mesmo, na frente dele. Ele deu risada. Só queria que eu consumisse. Hoje eu
consigo enxergar isso com clareza: tirando a parte ilegal, o comércio das
drogas é um mercado como qualquer outro. Segue os mesmos princípios de uma
empresa que vende chocolate, refrigerante, hambúrguer...
Pergunta. Como isso funciona no
narcotráfico?
Carlos. Pense no narcotráfico como uma
empresa. O objetivo da empresa é lucro. O lucro vem do consumo. Uma empresa que
vende chocolate quer que você fique viciado em chocolate. Uma fábrica de
refrigerantes quer que você fique dependente de refrigerante. Ou uma rede de fast food quer que você, sempre que sinta
fome, pense em um hambúrguer. Essas empresas usam todas as técnicas de marketing para convencer você a gastar o
máximo que puder do seu salário para comprar seus produtos – se possível, de
forma compulsiva: vício! Não é assim? Agora pense em uma "empresa"
cujo produto é proibido por lei. Como ela usa as táticas de marketing? Não tem como usar marketing de consumo em massa por razões
óbvias. Então, ela usa uma isca. E essa isca é a maconha.
Pergunta. A maconha tem esse poder de atrair
o consumidor de drogas pesadas?
Carlos. A maconha propriamente, não, mas a
forma como se tem acesso a ela, sim. A maconha funciona como aquela propaganda
do supermercado que anuncia um quilo de laranja por 30 centavos o quilo. A
laranja às vezes dá até prejuízo para o supermercado, mas uma vez que você foi
lá para comprar laranja, acaba comprando outras coisas de que não precisa. Esse
é o lance da maconha: fazer você ir ao "mercado". Quando você vai
comprar maconha, o traficante usa as mesmas técnicas de venda que as grandes
redes de lojas usam, só que para te convencer a comprar as outras drogas. Drogas
que têm potencial de causar dependência química. Ele te oferece uma dose
grátis: "por conta da casa", como degustação. Igual àquelas mocinhas
bonitas que ficam no supermercado oferecendo um pedaço de chocolate grátis, ou
um copo de refrigerante. Degustação. Quando você se dá conta, está comprando um
pino de cocaína com a mesma naturalidade que comprou um pacotinho de maconha ou
uma cerveja em um bar. Você pensa: "uma cheiradinha não vai me fazer
mal". Eu pensei assim quando cheirei a primeira vez, há três anos! Eu
pensava que tinha o controle, assim como eu tinha o controle sobre o álcool,
assim como eu sempre tinha o controle sobre a maconha. Só que, quando me dei
conta, eu já não tinha mais o controle. As drogas é que passaram a ter o
controle sobre mim.
Pergunta. Quando você sentiu que tinha
perdido o controle?
Carlos. (Pensativo). É sutil. Você um dia
vai ao banco para sacar dinheiro e percebe que estourou o limite do cheque
especial. Aí, começa a vender tudo o que tem para comprar pó. E quando você não
tem mais nada para vender, começa a vender as coisas dos outros: dos seus
colegas de república. E quando eles descobrem, te enchem de porrada, ameaçam
entregar você para a polícia, te expulsam... Uma hora você acorda e está
morando na rua e comprando pedra de crack
porque não tem dinheiro para comprar cocaína. Você sabe que cruzou a linha, só
não sabe exatamente quando...
Pergunta. Você não percebia que tinha
perdido o controle?
Carlos. Claro! Eu pensava: "caralho,
o que estou fazendo da minha vida"? Como cheguei a esse ponto? Ao mesmo
tempo em que eu queria procurar ajuda, tinha vergonha, medo... Medo do meu pai,
da polícia, dos meus amigos... Daí, você começa a ficar paranoico. Acha que
todo mundo está contra você. Menos de um ano depois de eu ter comprado meu
primeiro pino de cocaína, eu estava morando na rua, roubando tudo o que eu
podia e me prostituindo para comprar pedra na cracolândia. Aí, meu amigo, você
percebe que cavou um buraco tão fundo que sabe que não sairá dele jamais.
Pergunta. Como você começou a se prostituir?
Carlos. Chega um ponto em que você
simplesmente não se importa com mais nada, exceto com as drogas. Começa a fazer
coisas que certamente não faria em condições normais. Perde o nojo de comer
certas coisas quando você tem raros momentos de fome: latas de lixo perto de
restaurantes passam a ser sua fonte de comida. Perde o orgulho, a honra, o amor
próprio e o auto-respeito. Qualquer coisa fica em segundo plano. Pedra é sua
prioridade. A saúde não importa mais. É uma compulsão, algo que você faz quase
que por instinto. Então, um dia, um colega viciado que você tem diz: "tem um cara
que te paga 50 reais para você dar o cu para ele". Em circunstâncias
normais, você daria um soco na cara desse colega. Mas quando ouvi as palavras
"50 reais", a única coisa que me veio à cabeça era: "10
pedras". Não há o conceito de moralidade, legalidade ou sanidade nisso.
Porque é algo incontrolável. E você faz: com camisinha, sem camisinha... Aí um
dia você descobre que é HIV positivo, mas nada disso importa...
Pergunta. Como você se sentiu quando descobriu
que era HIV positivo?
Carlos. (Com um olhar de indiferença). Eu
nem me importei na hora. Tinha feito o teste quando a Prefeitura promoveu uma
ação na (rua) Helvétia para dar tratamento aos viciados, pouco antes daquela
ação de "limpar" (Carlos enfatiza as aspas com as mãos) o local dos
viciados. Fiz o teste alguns minutos depois de ter fumado uma pedra. Quando me
deram o resultado, pensei algo do tipo: "bom, tudo isso vai acabar
logo". Tive até uma sensação de alívio. Você quer, no fundo, morrer. Embora
não tenha coragem de cometer suicídio. Quando pensa em suicídio, imediatamente
você pensa: "preciso de uma pedra para afastar esses pensamentos
ruins".
Carlos
gargalha. Eu fico constrangido. Não sei se rio ou se choro. Até que ele
percebe meu constrangimento.
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Carlos. Não se preocupe, cara! Eu sei que é tragicômico tudo isso.
Pergunta. E agora, como você se sente com
relação a tudo isso? O que você acha que vai acontecer contigo daqui para
frente? Qual seu futuro?
Pela
primeira vez, os olhos de Carlos ficam marejados. Ele demora alguns
desconfortáveis segundos antes de tentar responder. Mas a voz fica embargada
e ele não consegue dizer nada. Então eu falo: "se quiser, não precisa
falar mais nada; paramos por aqui". Mas ele balança a cabeça
negativamente e diz: "não, eu preciso falar". Após chorar
copiosamente por alguns minutos, ele se recompõe e volta a falar.
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Carlos. O pior de tudo é que eu nunca deixei de ter consciência do que estava acontecendo. Como se eu tivesse passando por uma cirurgia, mas a anestesia não tivesse efeito. Como se eu assistisse o meu corpo sendo aberto, dilacerado e eu não pudesse fazer nada. Eu sei que tenho pouco tempo de vida...
Pergunta. Hoje em dia, há tratamento para a
AIDS...
Carlos. Não vai funcionar em mim. Sei
disso. Estou aqui há seis meses, sei que vou sair e enfrentar um mundo terrível
lá fora. Sem o apoio das pessoas daqui, com ficha policial suja por furto e
roubo, sem possibilidade de ter um emprego fixo, serei presa fácil para
recaídas. Cerca de 90% dos viciados têm recaída após a primeira internação por
causa dessas circunstâncias. Os números não mentem. Provavelmente, serei parte
dessas estatísticas. Se eu voltar a me drogar, meu corpo vai voltar a ficar
debilitado. Ficarei exposto a doenças. Com sorte, vou morrer de uma doença que
não me faça sofrer tanto. Uma dor de garganta, uma gripe... Com sorte, uns
dois, três anos a mais... Quem sabe? É isso. Vou lutar com todas as minhas
forças para não voltar àquela vida. Ao mundo das drogas.
Pergunta. Enfim, o que você pensa sobre as
drogas?
Carlos. (Pensativo). Drogas. Heroína, crack, cocaína, maconha? Drogas ilegais.
Álcool, tabaco? Drogas legais. Antidepressivos, ansiolíticos, calmantes? Drogas
controladas. Drogas são o meio, não o fim. Quem produz as drogas? Pessoas. As
pessoas, no final das contas, é que são responsáveis por tudo de bom e tudo de
ruim que as drogas representam. A metanfetamina é uma droga perigosíssima que é
fabricada a partir da efedrina, uma droga bastante eficiente no tratamento de
bronquite e outras doenças respiratórias. No fim das contas, as drogas não são
o problema, as pessoas é que são o problema. Pessoas que querem se beneficiar
da desgraça das outras. Seja com heroína, crack, cocaína... Seja com açúcar em excesso e a gordura saturada
que estão na indústria alimentícia, que causarão diabetes, hipertensão, doenças
cardíacas... Drogas. Drogas. Drogas. Ilegais, legais, controladas ou não...
Pergunta. Acha que vamos vencer a guerra
contra as drogas?
Carlos. (Gargalhando). Sem chance! Não do
jeito que os governos estão fazendo. Na verdade, a ação generalizada e
indiscriminada de repressão está facilitando a vida dos traficantes. Se você se
sente um criminoso ao comprar drogas, acaba se tornando muito mais simpático ao
traficante criminoso do que ao Estado, à polícia que quer te prender ou te
extorquir, ou à Justiça que quer te mandar para a cadeia... Como dependente
químico, posso dizer isso com toda a certeza: continuem fazendo o que estão
fazendo e vocês irão gerar uma legião de drogados. E não adianta nos matar,
porque continuarão surgindo mais de nós. Surgindo de onde vocês menos imaginam,
de onde menos esperam. Eu por exemplo: tive uma ótima família, uma excelente
criação e olha só onde fui parar! Olha a que ponto cheguei! Assim como eu, deve
haver centenas, milhares por aí, pelas ruas de todas as cidades do Brasil. É
fácil me condenar. É fácil dizer que a culpa é minha e só minha. Ninguém quer
enxergar o contexto como as coisas aconteceram. Ninguém quer ver a corrupção
generalizada que cresce ao redor do mundo das drogas: policiais, juízes,
deputados, senadores, políticos de todos os partidos... É mais fácil raciocinar
que a droga é a culpada. Que o drogado é o culpado.
Pergunta. Se a maconha fosse legalizada no
Brasil, você acha que teria seguido o mesmo caminho?
Carlos. Olha, pelo caminho que eu trilhei
para chegar até aqui, posso dizer com a mais absoluta certeza que não! Eu
gostava de maconha. Se eu pudesse plantar umas mudinhas na minha república, eu
provavelmente nunca teria tido qualquer contato com traficantes. Eu só me
tornei viciado em cocaína e crack
porque eu passei a ter contato com traficantes. Um dia, um traficante me
convenceu a usar quando eu estava bêbado – álcool diminui a capacidade
de julgamento.
Pergunta. Não é melhor alertar os jovens
para os perigos das drogas em geral?
Carlos. Isso tudo é inútil!
"Informação", "alertar", "prevenir"... Até porque
vejo muita desinformação nessas campanhas antidrogas. Qualquer cientista sério
sabe hoje que o tabaco é muito mais nocivo do que a maconha. Por que continuam
com esse blá-blá-blá com a maconha? Só porque os jovens usam a maconha de
brincadeira? As pessoas não percebem que essa desinformação, esse monte de
merda que falam sobre a maconha, causa descrédito. Você pensa: "porra, eu
fumei maconha e fiquei bem, por que cheirar cocaína me faria mal"?
Pergunta. Não é um risco muito grande expor
os jovens à maconha?
Carlos. Melhor maconha, tabaco e álcool do
que cocaína e crack. O problema é
jogar o que é uma brincadeira no mesmo balaio de drogas realmente perigosas.
Quer brincar? Deixa brincar? Explique os reais riscos, como não dirigir
alcoolizado, não fumar perto de crianças e coisas desse tipo.
Pergunta. O perigo, então, é exatamente o
contrário do que fazem as políticas públicas? Criminalizar a maconha é um erro?
Carlos. Um erro grosseiro! Assim como era
um erro grosseiro a Lei Seca dos anos 1920 nos Estados Unidos! Eles não
aprenderam com o erro!
Pergunta. E o que fazer com o viciado?
Carlos. O que estão fazendo comigo aqui:
tratar. Você pode até entrar nessa onda de brincadeira, mas quando se dá conta,
está com uma arma nas mãos, apontando para a própria cabeça. Você se torna um
doente. Sei que é difícil para as pessoas aceitarem isso: o viciado é um
doente. Não importa se você pegou uma gripe porque estava trabalhando até mais
tarde ou porque estava jogando bola na chuva. O que importa é que você está gripado
e precisa ser tratado. Com as drogas é a mesma coisa: não importa se a pessoa
se tornou viciado por ter uma família desestruturada, se não teve informação,
instrução, ou se começou nisso de zoeira, de brincadeira. O que importa é que a
pessoa está viciada, está doente. E, como doente, precisa de tratamento médico.
Pergunta. Você sabe se algum dos seus amigos
do tempo de faculdade se tornou viciado?
Carlos. Não tive mais contato com nenhum
dos meus amigos que fumavam maconha comigo naquela época. Mas até onde eu sei,
nenhum deles passou pelo que passei. Porque era eu dava a cara à tapa, eu ia
buscar maconha para todo mundo se divertir, eu me expunha aos perigos do
tráfico de drogas. Só que quando me tornei viciado em drogas pesadas, nenhum
deles quis me ajudar, ninguém tentou me entender. Todos se voltaram contra mim,
todos me condenaram. As mesmas pessoas que têm esse falso moralismo hipócrita
em relação à maconha são aquelas cujos filhos fumam maconha em festa de
faculdade, da escola ou de grupinho de colegas. E muitas vezes, por quê? Porque
é proibido, porque é ilegal. Isso torna a coisa mais atraente ainda!
Pergunta. A proibição é um fator que instiga
a experimentar?
Carlos. Com certeza! Eu vi acontecer
muitas vezes! Descumprir as regras, desafiar a família, as leis, a polícia... A primeira vez que fui pego pela
polícia, estava com uns saquinhos de maconha no bolso, que ia levar para uma
festa. Daí eles fizeram a festa: um garoto com jeito de mauricinho e maconha no
bolso... Levaram todo dinheiro que eu tinha, me ameaçaram... Você sabe que
muitos policiais ganham dinheiro com o tráfico, extorquindo os traficantes, os
consumidores... Você percebe quão sujo, quão podre é o sistema: o governo paga
mal os professores, que ensinam mal os alunos, muitos dos quais se tornam
bandidos e policiais... O governo paga mal os policiais que precisam fazer bico
para sobreviver. Então o policial vê um traficante morando em um condomínio
fechado, com piscina, vê que ele nunca é preso, que compra a Justiça, tem os
melhores advogados... Uma hora ele se pergunta: "por que eu estou tentando
lutar contra esse cara"? Quando ele se faz essa pergunta, fodeu tudo!
Porque é aí que ele decide se beneficiar do sistema. É assim que o sistema
"funciona". E vai continuar assim, enquanto as pessoas quiserem que
tudo continue do jeito que está.
C. L. M.
morreu aos 30 anos na madrugada do dia 14 de fevereiro de 2014 de falência
múltipla dos órgãos causada por uma infecção oportunista da AIDS. Depois de
passar seis meses internado no centro de recuperação, teve uma recaída apenas
duas semanas após receber alta.
Desde que
entrou no mundo das drogas, C. L. M. nunca mais teve contato com a família. O
pai usa a história do próprio filho em palestras para reforçar as convicções
de que o combate às drogas deve acontecer de forma ostensiva, da manutenção
da proibição e criminalização do traficante ao usuário.
Enfim, esta
é a história de mais uma baixa de um "soldado" que perdeu a
"guerra contra as drogas". Reflete a história
de como o Brasil, assim como outros países, está agindo estrategicamente
errado nas políticas públicas de combate às drogas.
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