quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Indústria, Ciência e Tecnologia (entrevista à revista imPRESSo)

[Entrevista minha à revista imPRESSo, 17 de janeiro de 2012].

Foto: Future Technology Portal, 2012.

1- Segundo o documento “A Indústria e o Brasil”, da CNI (Confederação Nacional da Indústria), o caminho para mais crescimento passa pela diversificação da produção e exportação de manufaturas. O Brasil tem fôlego para diversificar e exportar mais em 2012?
R.: O espaço é limitado. A diversificação está relacionada à capacidade produtiva, o que tem a ver com as vantagens comparativas e com a disponibilidade dos fatores de produção, mas principalmente na capacidade de consolidar essas vantagens. Especialmente no que diz respeito à P&D (Pesquisa & Desenvolvimento), que, no Brasil, é algo que ainda não está ao alcance de muitas empresas, em grande parte pelos altos custos tributários relativos a esse tipo de investimento.
Quanto ao aumento de exportação, essa variável é função direta da competitividade da taxa de câmbio e da demanda estrangeira. E ambas vivem um período desfavorável no caso brasileiro. A taxa de câmbio está sobrevalorizada, em particular pela entrada de capitais financeiros, atraídos, em parte, pelas altas taxas de juros. E a demanda externa vive um momento de incertezas pela estagnação na Europa e nos EUA, além da possibilidade de desaceleração da economia chinesa. O fator “China” é o que tem favorecido o Brasil nas contas externas, porque o consumo daquele país tem elevado os preços das commodities no mercado internacional. Se a China desacelerar, os preços de produtos como soja, açúcar e aço podem cair, o que poderia prejudicar o saldo comercial brasileiro.


2- Como podemos concorrer com a China e a Índia, por exemplo, que realizam grandes investimentos em inovação e também em infraestrutura? Uma mudança agora demandaria enormes investimentos por parte do governo, que tem sabidamente um déficit estratégico e de execução. Como superar esse problema?
R.: A China e a Índia, durante muito tempo, competiram no mercado internacional por meio do fator de produção “trabalho”. A mão-de-obra barata desses países possibilitou a venda de mercadorias para o mundo todo e atraiu parte expressiva dos investimentos diretos do exterior, a ponto de serem denominadas as “fábricas do mundo” na década de 1990.
A China iniciou uma mudança desse padrão no início da década de 2000, com pesados investimentos em C&T (Ciência & Tecnologia), para dar o salto produtivo que a Coreia do Sul deu nos anos 1980. E está sendo muito eficaz nesse processo, diga-se de passagem. Por exemplo, as montadoras chinesas estão se tornando cada vez mais fortes em todo o mundo. Em breve, a China deixará de ser conhecida pejorativamente como produtora de “ching lings” e se tornará forte em produtos de alta tecnologia, assim como Japão e Coreia do Sul, além de EUA e Europa.
E o Brasil ficou estagnado neste processo. Na segunda metade da década de 1990, o então governo FHC cometeu dois erros estratégicos importantes. Em primeiro lugar, acreditou que a estabilidade econômica por si só traria um ambiente favorável à P&D e as empresas começariam a investir. Segundo, como consequência do primeiro, o Estado poderia diminuir a participação de seus gastos nessa área e se concentrar em setores que considerou mais importantes, como Educação e Infraestrutura – além dos pesados encargos da dívida pública, que então comprometiam um percentual elevado dos gastos do governo.
Os governos Lula e Dilma não mudaram substancialmente essa política. Na hierarquia dos orçamentos públicos, C&T continua no “final da fila”. Pior: os investimentos em Infraestrutura continuam aquém do necessário, porque as preocupações acabam sendo muito mais em afagar os partidos da base de coalizão do que traçar um plano estratégico para fazer o Brasil sair da dependência de tecnologia estrangeira.
Como sair disto? É urgente que os investimentos em C&T entrem nas prioridades das políticas públicas, assim como Educação, Saúde e Infraestrutura. Os governantes precisam estar convencidos de que C&T é uma questão de sobrevivência no comércio exterior e que, sem isso, o Brasil ficará à mercê das intempéries do sistema financeiro internacional.
Aliás, o Brasil tem um problema adicional a lidar nessa área: como fazer com que a tecnologia desenvolvida nos centros estatais de pesquisa chegue às empresas brasileiras e, enfim, à população brasileira. O processo de inovação no Brasil muitas vezes é relegado ao segundo plano porque o empresariado brasileiro simplesmente não se interessa ou não consegue produzir devido a processos burocráticos e afins.
3- Sabendo que a sustentabilidade é uma exigência cada vez maior por parte dos países importadores, a indústria brasileira tem um crescimento sustentável capaz de suportar essas exigências?
R.: Quando se trata do comércio exterior, o conceito que os países importadores têm de sustentabilidade está muito mais associado ao “que contém este produto” do que à “forma como este produto foi fabricado”. Quando se fala em sustentabilidade em amplo sentido, está-se falando das duas coisas. Ora, tanto para se obter produtos com baixo teor de componentes tóxicos, como para se fabricar bens com mínimo impacto ao meio ambiente, são necessários custos adicionais. E custos mais altos significam lucros mais baixos, invariavelmente.
O ambiente econômico, social e político no Brasil muitas vezes incentiva as empresas a agirem de forma não sustentável, apesar do discurso. Falta de fiscalização e impunidade são os dois principais fatores desse comportamento, que vão à contramão da sustentabilidade. E o Brasil tem ambos!
Ocorre que as empresas brasileiras eventualmente tentam reproduzir os padrões que adotam no mercado interno para os consumidores estrangeiros. Quando há algum tipo de restrição aos produtos brasileiros por não se adequarem aos padrões internacionais, levanta-se a bandeira do protecionismo que nem sempre é justificada. Assim, algumas empresas brasileiras exportadoras sofrem desgaste de suas marcas no exterior, passam a incorrer em altos custos para reverter a imagem negativa gerada e atender às exigências do mercado consumidor estrangeiro. E só aí o consumidor brasileiro pode obter os benefícios das melhorias.
O caminho correto é o inverso. Cito o exemplo da Alemanha, o 2º maior país exportador do mundo. Os produtos que a Alemanha exporta devem agradar em primeiro lugar ao consumidor local. A escala gerada a partir daí permite a exportação do excedente de produção, com qualidade reconhecida mundialmente. E como a sustentabilidade faz parte do cardápio das exigências locais, o país tem condições de exportar atendendo aos próprios critérios.
Se o Brasil não percorrer caminho parecido, continuará com o discurso versus a prática.
4- Corremos o risco de ser um país agrícola? Em outras palavras, já somos um dos maiores exportadores de commodities do mundo. É possível agregar também a indústria manufatureira nesse rol de exportações recordes?
R.: Esse é um risco que começou a ser combatido na Era Vargas, ainda na década de 1930. Nos anos 1950, a CEPAL tinha uma visão clara e verdadeira de que países que exportam produtos com baixo valor industrial estão fadados à “deterioração dos termos de troca”. Deterioração dos termos de troca pode ser medido hoje da seguinte forma: uma tonelada de soja hoje, no mercado internacional, custa cerca de US$470, e um chip de computador de última geração custa quase US$1.000[1]. Assim, é necessário exportar mais de duas toneladas de soja para importar um único chip de computador. E essa diferença em termos de produtos primários e produtos manufaturados já foi bem maior até o fim da década de 1990.
Nos últimos dez anos, a tal deterioração dos termos de troca parece ter desaparecido do debate, porque os preços das commodities nunca estiveram tão altos. E, de novo, o fator China é o que explica essa anomalia do sistema econômico. O consumo chinês no mercado internacional inflacionou os preços das commodities e o Brasil foi um dos países que mais se beneficiou desse processo. É isso o que explica os sucessivos recordes de exportações que temos visto nos últimos anos – e que tem alavancado o crescimento econômico expressivo do período 2006-2011.
Se pegarmos a pauta de exportações do Brasil hoje, veremos que há uma centralização em produtos de baixo valor agregado. De alto valor agregado, apenas veículos e aviões têm maior expressão. Para que a indústria ganhe destaque no rol das exportações, é necessária uma política industrial que trace estratégias (e, principalmente, efetive as estratégias traçadas) com essa finalidade. Assim, voltamos ao tópico anterior: C&T da parte do governo que alavanque P&D por parte das empresas.
5- A questão tributária é um grande empecilho para o desenvolvimento do nosso mercado externo. Como resolver essa questão?
R.: A questão tributária é, eu diria, crucial nesse processo. Em primeiro lugar, o Brasil “exporta tributos”. Mesmo com a Lei Kandir (de 1996), a cadeia de produção acaba arrastando alguns tributos para os preços finais dos produtos exportados.
Em segundo lugar, o sistema tributário brasileiro é altamente regressivo, ou seja, impinge um custo proporcionalmente maior a quem tem renda menor. Qualquer produto que se adquire no mercado interno contém, pelo menos, 40% de tributos embutidos.
Suponha um produto custe R$200, dos quais R$80 correspondem a tributos embutidos. Pensemos em uma família que ganhe R$800 e outra que ganhe R$4.000 que irão comprar o mesmo produto. A primeira pagará 10% da renda em tributos e a segunda, apenas 2%. Isso é regressividade tributária.
A regressividade tributária enfraquece a capacidade de a indústria se sustentar com base no mercado interno. Sem força no mercado interno, a dependência em relação ao comércio exterior é perigosa: qualquer oscilação no mercado internacional pode levar a empresa a perder muito. O que não acontece em países como a Alemanha, por exemplo.
Para resolver a questão só há uma forma: reforma tributária. A reforma tributária correta deve, em primeiro lugar, simplificar os tributos indiretos – que são os que incidem sobre o consumo, tais como IPI, ICMS, COFINS, PIS e ISSQN – de forma a unificá-los em apenas um: o imposto sobre valor agregado. Em segundo lugar, o imposto sobre valor agregado deve ser cobrado no destino e não na origem como ocorre atualmente. Terceiro ponto: a alíquota máxima não deve ser superior a 9%, sob o risco de encarecer excessivamente os produtos e serviços ao consumidor. E, por fim, deve-se trocar o peso dos tributos indiretos pela tributação direta, como imposto de renda (principalmente da pessoa física) e impostos sobre propriedade, assim como acontece nos países desenvolvidos – EUA, Europa, Japão e Coreia do Sul.
Ademais, a tributação indireta excessiva no Brasil gera uma espécie de reserva de mercado: as empresas já instaladas detêm uma vantagem adicional sobre as empresas potenciais ingressantes, já que os produtos acabam sendo muito mais caros. Assim, planos de negócios são inviabilizados pelo alto custo do produto final, causado pelos tributos indiretos como IPI, ICMS, COFINS e PIS. Esse alto custo implica em uma demanda fraca e um risco extraordinário ao empreendimento. Resultado: o plano de negócios é abandonado e as empresas já instaladas tendem a formar oligopólios. A concentração de mercado é péssima para a diversificação, o que vai contra a proposta de geração de mais empreendimentos com maior valor agregado.
6- Segundo o documento da CNI, “novas oportunidades de investimento na cadeia do petróleo se abrem com o desafio de exploração de óleo e gás na camada de pré-sal”. A Índia desenvolveu uma forte indústria farmacêutica com base na exploração do petróleo. O Brasil será apenas mais um exportador de petróleo, ou conseguirá desenvolver uma indústria forte com base na exploração de produtos de origem petrolífera?
R.: Nunca é demais lembrar que o petróleo é uma fonte de energia não renovável e altamente poluente – seja como fonte de energia, seja como matéria-prima. Mesmo os países exportadores de petróleo já se movimentam na direção de encontrar alternativas energéticas renováveis e menos poluentes.
O Brasil pode se desenvolver como potência na área de geração de energia dos derivados do petróleo, bem como na indústria petroquímica. Desde que, obviamente, haja estratégia de governo traçada e executada para isso. A ação do Estado, não só no Brasil, como em todos os lugares do mundo desenvolvido, foi fundamental para orientar os investimentos privados. Sem tal ação, os investimentos privados não se arriscarão em empreendimentos com alto grau de incertezas e cujo retorno sobre investimento oferece longos períodos para a recuperação do capital investido.
7- Desenvolver a indústria nacional. Essa proposta apresenta uma problemática: boa parte da indústria nacional tem origem estrangeira. Desenvolver essa indústria fortalece, indiretamente, economias de outros países. Como criar uma indústria puramente nacional, que concorra no mercado interno e externo com a indústria estabelecida em nosso território? Por exemplo, a China está desenvolvendo um forte mercado automotivo próprio, que se sustentou, a princípio, no mercado interno, mas que agora ganhou outros países. É possível seguir esse rumo?
R.: A China entendeu claramente as regras do jogo. O Brasil parece que ainda não.
A China encontrou algo que oferecia vantagens comparativas de curto prazo – no caso, produtos fabricados com mão-de-obra barata – mas não se deixou iludir pela teoria econômica que defende a tese de que as mesmas vantagens comparativas mantêm o equilíbrio no longo prazo. Com o tempo, a diversificação, os investimentos em capacidade produtiva e em tecnologia são os itens que asseguram a verdadeira independência econômica.
A Inglaterra foi o primeiro país a dar esse passo com a revolução industrial. Os EUA deram o salto no início do século 20 e se tornaram a economia hegemônica contrariando tudo o que os modelos econômicos dos anos 1950 estabeleciam. Japão, Alemanha e Itália recuperaram suas economias após a 2ª Guerra Mundial com base nesse princípio. A Coreia do Sul deixou de ser um país atrasado e agrário na década de 1960 para se tornar uma potência a partir de meados da década de 1980. Agora, a China, ao que tudo indica, ocupará o cargo de economia hegemônica do século 21.
O Brasil tem vivido à base de ciclos econômicos que geram bolhas de crescimento localizadas. Mas não tem utilizado os bons momentos para dar os passos seguintes.  Não houve uma estratégia claramente constituída, como se vê na China e na Coreia do Sul, por exemplo, que fortalecesse a indústria doméstica incorporando a alta tecnologia.
O capital estrangeiro em si não é problema. É solução. Desde que seja utilizado de forma estratégica, integrando-o à indústria doméstica e aos centros de pesquisa. Pensar em indústria puramente nacional é um equívoco em termos de estratégia para política industrial, porque simplesmente é inviável. A China, por exemplo, não fortaleceu a indústria automotiva sozinha, mas sim desenvolveu tecnologia integrada a empresas de países como EUA, Itália e Japão. Hoje em dia, nenhum país conseguirá “dar o salto” sozinho. Pensar em indústria puramente nacional pode induzir os governantes a executar políticas equivocadas, como a “Lei de Reserva de Mercado” do período militar.