No último final de semana, um amigo que vive entre a Holanda e o Brasil veio me visitar. Contou-me uma história que me deixou, ao mesmo tempo, maravilhado e entristecido ao comparar com a situação brasileira.
Descreveu como a Holanda vivencia, de longa data, um movimento pela redução das desigualdades sociais em amplo aspecto. E como esse movimento é forte a partir das escolas do ensino fundamental daquele país: como os pais se envolvem diretamente na Educação dos filhos no mais forte espírito comunitário.
Descreveu como a Holanda vivencia, de longa data, um movimento pela redução das desigualdades sociais em amplo aspecto. E como esse movimento é forte a partir das escolas do ensino fundamental daquele país: como os pais se envolvem diretamente na Educação dos filhos no mais forte espírito comunitário.
Foto: Abril Viagens, acesso em 2018. |
A
história é do chefe dele na divisão holandesa do banco em que trabalha. Meu
amigo contou que estima que o chefe ganha facilmente entre um milhão e um milhão e meio de
euros por ano. E que se tornou amigo dele nas primeiras idas à Holanda.
Já
no primeiro encontro, um choque. Marcaram um almoço de famílias em um
restaurante de Amsterdã. Combinaram-se de se encontrar na porta do local. E eis
que surge o milionário, a esposa e os filhos... de bicicleta! De bicicleta para um almoço de negócios? Meu amigo
esperava no mínimo um daqueles carrões que fazem o sonho da classe média
brasileira, uma BMW, uma Mercedez... Não. Bicicletas!
Em
outro encontro, a narrativa foi exatamente sobre o espírito comunitário acima mencionado. A escola onde os filhos do
holandês milionário estuda – onde também estudam, diga-se de passagem, os
filhos do lixeiro, do porteiro, da faxineira – enfrentava um surto de piolhos. E
os pais, avisados pela escola, decidiram montar uma espécie de força-tarefa
para combater a praga. Como funcionava? A cada dia da semana, um grupo de pais
inspecionava as cabeças das crianças para detectar se ainda estavam infestadas
por piolhos.
Imagine
a cena: um milionário que vai ao trabalho e aos encontros de negócios de
bicicleta, saindo alguns dias mais cedo do trabalho, para procurar por piolhos
nas cabeças das demais crianças da escola do filho. Algumas das crianças
possivelmente filhos das faxineiras que trabalham para a corporação que o paga
mais de um milhão por ano!
Soou surreal, não é? Ou, no máximo, uma "exceção à regra"? Não. Esse é o espírito do holandês médio, não somente do holandês milionário.
Soou surreal, não é? Ou, no máximo, uma "exceção à regra"? Não. Esse é o espírito do holandês médio, não somente do holandês milionário.
2. O brasileiro médio
Consegue imaginar cena análoga à do "holandês milionário caçando piolhos" sendo protagonizada por um morador dos Jardins em São Paulo ou do Leblon no Rio de Janeiro?
Nem
precisa tanto: consegue imaginar alguém da classe média brasileira de qualquer
cidade convivendo em condições de igualdade com o lixeiro ou com a faxineira
diarista, frequentando os mesmos espaços e integrando as famílias? Consegue
imaginar alguém da classe média alta convidando a diarista e os filhos para
nadar na piscina da sua casa?
Foto: sequência de cenas do filme A que horas ela volta? (2015, GloboFilmes).
Ao ver Jéssica (Camila Márdila), a filha da empregada doméstica, Val (Regina Casé), nadando com os filhos, a patroa, Dona Bárbara (Karine Teles), com nojo, manda esvaziar a piscina da casa.
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Na
cultura brasileira permeia-se o oposto do espírito comunitário holandês. Reforça-se
o espírito individualista em todos
os espectros para perpetuar uma sociedade quase que de castas. Em que determinado
grupo social privilegiado detém uma espécie de ascensão divina que lhe permite
desfrutar da servidão de todo o resto da sociedade. E essa "classe servil" tem uma espécie de obrigação
moral derivada de um "determinismo natural" de servir
a essa casta privilegiada.
Assim,
é "natural" que trabalhem 50, 60, 70 horas para aquela casta em troca – na
verdade, uma "caridade" – de um salário mínimo. Encargos pagos "pelo empresário"? Onde já se
viu tamanha injustiça?
É
"natural" que sejam relegados a ser cidadãos de segunda categoria,
com assistência de saúde mínima do mínimo, educação somente
para conhecer "o básico" para aprender a servir, previdência social sofrível só para não morrer de fome ou inanição, transporte público
precário e superlotado (só para chegar ao serviço), entre outras situações
lamentáveis a que são expostos em pleno século 21.
Fotomontagem: Carta Educação e Nova Escola, acesso em 2018.
Educação pública? Somente para conhecer "o básico" para aprender a servir! Conscientizar-se da estrutura social e política? Nem pensar! "Escola Sem Partido" JÁ!
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Nada
mais "antinatural", portanto, querer que o Brasil seja um país mais justo e igualitário, que se reduzam
as desigualdades sociais, as disparidades salariais e que se deseje igualdade
de oportunidades, pelo menos, no tocante aos serviços públicos básicos. Os
mesmos que no parágrafo anterior são descritos como naturalmente destinados aos
"cidadãos de segunda categoria" por uma casta que ainda crê que abre
mão de muito para conceder o que julgam ser "privilégios".