O liberalismo foi uma das principais correntes de pensamento da história
da humanidade. Gestada no século 18, pensadores iluministas como Montesquieu e
Voltaire se contrapuseram ao Estado Absolutista. Os reis absolutistas
encarnavam de certa forma a representação da figura de Deus criador. E detinham
o poder absoluto sobre as pessoas, tal como o próprio nome indica, expressando
a impossibilidade de que estas pensassem por si sós.
Os liberais assim ensejaram aquela que viria a ser a "separação
entre o Estado e a igreja", frase cunhada por Thomas Jefferson que
inclusive representou o fato com a figura de um muro separando-os.
Foto: Thinglink.com, acesso em 2017.
"Contemplo com reverência soberana que age de todo o povo americano, que declarou que sua legislatura deve 'fazer nenhuma lei respeitando um estabelecimento da religião, ou proibindo o seu livre exercício', assim, construindo um muro de separação entre igreja e Estado".
(Thomas Jefferson: carta à Associação Batista de Danbury, em 1802).
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Portanto, uma das principais bandeiras dos herdeiros dessa escola de
pensamento, posteriormente completadas por John Locke no campo político e Adam
Smith na esfera econômica deveria ser tal separação entre Estado e igreja.
Deveria!
Contudo, recentemente nos EUA e no Brasil, grupos de direita ditos
liberais têm trilhado o caminho oposto, criando o novo-liberalismo
religioso.
No Brasil, mesmo jovens autodenominados liberais – inclusive alguns
deles são declaradamente ateus, outros assumidamente gays – têm encampado lutas
em favor de grupos moralistas religiosos. Como o ataque ao QueerMuseu, que
talvez tenha sido o divisor de águas no espectro das ações políticas em prol
dos religiosos e que abriu uma verdadeira guerra moralista contra as artes
livres.
A pergunta que não quer calar é: por que os novos-liberais passaram a
adotar bandeiras moralistas que flagrantemente caminham na direção oposta ao do
Estado laico do antigo
liberalismo?
A resposta pode ser dividida em duas fases: uma fase estratégica e outra fase tática.
A fase
estratégica se refere a uma questão de plano de longo prazo. Sob
esse aspecto, a resposta à pergunta é relativamente simples e altamente
inquietante: a religião é o mais eficiente mecanismo de controle social já
inventado pela humanidade. Mais eficiente inclusive do que a força policial e
militar.
A religião funciona como um mecanismo de autocoerção voluntária. Pelo
simples pavor do "julgador supremo", pelo pânico do "olho
onisciente, onipresente e onipotente", as pessoas se conformam.
Aceitam a situação que lhes é imposta pela força do sistema como uma
espécie de "provação divina", expressa na famigerada expressão: "é
a vontade de Deus". Acreditam que se forem fortes e resistirem à escassez
como uma forma de penitência, sem sucumbir aos desejos da carne e às tentações,
herdarão um futuro melhor em outro plano. No plano superior, no infinito
espiritual.
O mais brilhante dessa forma de controle é que ela é quase à prova de
falhas. O medo das pessoas é tão grande que elas são autocoagidas a nem sequer
questionar. É proibido perguntar. Duvidar. Pensar. Passagens da bíblia, por
exemplo, deixam claro que a fé deve ser absoluta e irrestrita. Que não se pode
sequer questionar a própria fé. Não se pode tolerar outros deuses. Portanto,
todas as outras religiões estão inerentemente "erradas". Só há uma "correta".
Fotomontagem: Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora de Campinas, acesso em 2017. O Arcanjo no ar, acesso em 2017.
O pecado imperdoável, o único ao qual Deus não perdoa: blasfemar contra o Espírito Santo. Negar a existência do Espírito Santo é blasfêmia. Logo, negar a existência do Espírito Santo é imperdoável!
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Eu disse quase à prova de falhas. Quase!
Um dos problemas da religião é que ela forma um "todo"
indissociável das "partes". E nenhuma parte pode estar errada, senão,
o todo está errado. Dito de outra forma: se a bíblia, por exemplo, é a
transcrição literal da vontade de Deus, ela está certa em seu todo e em suas
partes. Logo, nenhuma parte pode estar errada, sob o risco de suscitar o
seguinte questionamento: "oras, se esta parte
está errada, o que mais poderia estar errado? Será que não está tudo errado?"
Um exemplo prático: a famosa passagem do Levítico 18:22 que condena a
relação homossexual dizendo: "com homem não te deitarás como se fosse
mulher; é abominação".
E eis que emerge a perseguição aos homossexuais sob licença divina. Se
está escrito na bíblia que é abominação, "não tem problema" na cabeça
dos mais extremistas eventualmente espancar até a morte uma travesti, porque
ela "merece", já que é "repulsivo" um homem se comportar
como mulher. É a "vontade de Deus" matá-la!
Foto: Central M.O., acesso em 2017.
Travesti Dandara do Santos, 42 anos, espancada até a morte em Fortaleza (CE).
O crime aconteceu no dia 15 de fevereiro de 2017.
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Ou não? Se não for a vontade de Deus, será que há algo mais naquele
velho livro que não estaria equivocado?
Se há mais coisas erradas no "bom livro", quem teria escrito
tudo aquilo? Com que intenção? Será que houve mesmo um pecado original cometido
pelo mais famoso casal da cristandade, pai e mãe de toda a humanidade? Se tal
pecado não teria acontecido, qual seria a função de Jesus Cristo? Morrer em
sacrifício para expurgar os pecados dos seres criados à imagem e semelhança de
Deus? Será que tudo isso não é invenção? Será que o próprio Deus não seria uma
invenção?
Critical System Failure in the Matrix!
Foto: Matrix - System Failure, acesso em 2017.
Eu sei que você está ai. Eu posso senti-lo agora.
Sei que você está com medo. Você está com medo de nós.
Está com medo das mudanças.
Eu não conheço o futuro.
Eu não vim aqui pra te dizer como isso vai terminar.
Eu vim aqui te dizer como vai começar.
Vou desligar este telefone e mostrar a essas pessoas o que
não quer que elas vejam.
Vou mostrar a elas um mundo sem você.
Um mundo sem regras,
limites ou barreiras.
Um mundo onde tudo é possível.
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Uma falha crítica no sistema da Matrix! É o que ocorre quando a pergunta fatídica é feita. As pessoas que se
perguntam isso e chegam a uma resposta "adversa", começam a
questionar também por que se deve aceitar a ordem imposta segundo tais pressupostos.
Ordem que permite, por exemplo, que pessoas morram de fome e inanição na África
enquanto 1% da humanidade detenha metade da riqueza do mundo. Qual a lógica
disso?
Não há. Se os 7,5 bilhões de habitantes da Terra tivessem os mesmos
hábitos de consumo dos 5% – os estadunidenses – mais ricos, o planeta entraria
em colapso. Por isso, é necessário que o maior percentual possível aceite sua
condição como uma provação imposta por Deus para permitir, por meio da resignação
penitente, a passagem para um mundo melhor.
E as "religiões erradas", aquelas contra as quais a
cristandade entra em guerras santas, cumprem um papel fundamental na
geopolítica mundial. Esse embate permite manter o mundo em permanente tensão,
em permanente luta do "bem contra o mal".
O mesmo "bem contra o mal" maniqueísta que faz com que os
"cidadãos de bem" se unam contra os "homens maus", bandidos
que são pessoas inerentemente ruins, incorrigíveis, incapazes de conviver em
sociedade. Estes devem ser simplesmente mortos. "Bandido bom é bandido
morto": liberem, pois, o porte de armas para que o cidadão de bem se
defenda, defenda a sua família, o seu Deus, a sua honra... Já sabemos onde isso
vai parar, certo?
Toda vez em que alguém surge com um propósito que não seja excludente há um
distúrbio no "equilíbrio natural" das coisas. Porque a própria
sobrevida do sistema depende da manutenção da exclusão em larga escala. Em
última análise, todos aqueles que se contrapõem a partes da lógica do sistema
estão inexoravelmente contra todo o sistema. E
devem ser duramente combatidos.
Para tanto é essencial criar uma vala comum onde são lançados aqueles
com os propósitos de inclusão ao invés da segregação. Fácil! São todos
esquerdopatas comunistas, adoradores de vagabundos, farsantes de direitos
humanos defensores de bandidos, gayzistas, feminázis, imorais, pervertidos,
depravados, pedófilos, fomentadores da promiscuidade que querem destruir os
valores da família tradicional e, em última análise, impor o reino de Satanás
contra Deus.
Foto: Huffpost Brasil, acesso em 2017. "Performance La Bête que inaugurou a Mostra Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. O homem nu trata-se do artista carioca Wagner Schwartz e a obra era uma releitura da série Bicho, considerada um clássico da artista brasileira Lygia Clark". (Texto: Huffpost Brasil). Uma criança tocando a perna de um homem nu disparou o alarme moralista em todo o Brasil com a acusação de PEDOFILIA. Será? |
Pronto! Resolvido! Personificou-se o "mal" ao qual se
contrapor. Qualquer um que preencha qualquer um desses itens é a figura do mal.
E contra esse mal devem-se criar personagens que encarnem heróis que venham a
libertar o povo dessa terrível ameaça. É aí que surge a fase tática!
A fase tática consiste em eleger no médio prazo todos aqueles que se
contrapõem à personificação do "mal". E toda a sorte de políticos e
pseudocelebridades surgirão pegando carona nessa onda. Uns simplesmente por
dinheiro, outros pelo dinheiro e pelo poder, mas sempre tem o componente
"dinheiro" na história.
Explica-se, assim, porque grupos de jovens novos-liberais promovem
ataques contra museus e apresentações que favorecem de certa forma a
diversidade, ao passo que apoiam "não-políticos" empresários que
abraçam um discurso cada vez mais conservador e moralista, enquanto vibram com
a aprovação do ensino religioso confessional nas escolas públicas pelo Supremo
Tribunal Federal e lutam pela aprovação do "Escola Sem Partido".
As duas mais eficientes formas de conscientizar a população são pela
Educação e pelas Artes. Silenciem-se ambas e se manterá o povo cativo.
Foto: APES, acesso em 2017.
Escola Sem Partido! As duas mais eficientes formas de conscientizar a população são pela Educação e pelas Artes. Silenciem-se ambas e se manterá o povo cativo.
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