domingo, 8 de outubro de 2017

O novo-liberalismo religioso

O liberalismo foi uma das principais correntes de pensamento da história da humanidade. Gestada no século 18, pensadores iluministas como Montesquieu e Voltaire se contrapuseram ao Estado Absolutista. Os reis absolutistas encarnavam de certa forma a representação da figura de Deus criador. E detinham o poder absoluto sobre as pessoas, tal como o próprio nome indica, expressando a impossibilidade de que estas pensassem por si sós.
Os liberais assim ensejaram aquela que viria a ser a "separação entre o Estado e a igreja", frase cunhada por Thomas Jefferson que inclusive representou o fato com a figura de um muro separando-os.
Foto: Thinglink.com, acesso em 2017.
"Contemplo com reverência soberana que age de todo o povo americano, que declarou que sua legislatura deve 'fazer nenhuma lei respeitando um estabelecimento da religião, ou proibindo o seu livre exercício', assim, construindo um muro de separação entre igreja e Estado".
(Thomas Jefferson: carta à Associação Batista de Danbury, em 1802).
Portanto, uma das principais bandeiras dos herdeiros dessa escola de pensamento, posteriormente completadas por John Locke no campo político e Adam Smith na esfera econômica deveria ser tal separação entre Estado e igreja. Deveria!
Contudo, recentemente nos EUA e no Brasil, grupos de direita ditos liberais têm trilhado o caminho oposto, criando o novo-liberalismo religioso.
No Brasil, mesmo jovens autodenominados liberais – inclusive alguns deles são declaradamente ateus, outros assumidamente gays – têm encampado lutas em favor de grupos moralistas religiosos. Como o ataque ao QueerMuseu, que talvez tenha sido o divisor de águas no espectro das ações políticas em prol dos religiosos e que abriu uma verdadeira guerra moralista contra as artes livres.
A pergunta que não quer calar é: por que os novos-liberais passaram a adotar bandeiras moralistas que flagrantemente caminham na direção oposta ao do Estado laico do antigo liberalismo?
A resposta pode ser dividida em duas fases: uma fase estratégica e outra fase tática.
A fase estratégica se refere a uma questão de plano de longo prazo. Sob esse aspecto, a resposta à pergunta é relativamente simples e altamente inquietante: a religião é o mais eficiente mecanismo de controle social já inventado pela humanidade. Mais eficiente inclusive do que a força policial e militar.
A religião funciona como um mecanismo de autocoerção voluntária. Pelo simples pavor do "julgador supremo", pelo pânico do "olho onisciente, onipresente e onipotente", as pessoas se conformam.
Aceitam a situação que lhes é imposta pela força do sistema como uma espécie de "provação divina", expressa na famigerada expressão: "é a vontade de Deus". Acreditam que se forem fortes e resistirem à escassez como uma forma de penitência, sem sucumbir aos desejos da carne e às tentações, herdarão um futuro melhor em outro plano. No plano superior, no infinito espiritual.
O mais brilhante dessa forma de controle é que ela é quase à prova de falhas. O medo das pessoas é tão grande que elas são autocoagidas a nem sequer questionar. É proibido perguntar. Duvidar. Pensar. Passagens da bíblia, por exemplo, deixam claro que a fé deve ser absoluta e irrestrita. Que não se pode sequer questionar a própria fé. Não se pode tolerar outros deuses. Portanto, todas as outras religiões estão inerentemente "erradas". Só há uma "correta".
Fotomontagem:
Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora de Campinas, acesso em 2017.
O Arcanjo no ar, acesso em 2017.
O pecado imperdoável, o único ao qual Deus não perdoa: blasfemar contra o Espírito Santo. Negar a existência do Espírito Santo é blasfêmia. Logo, negar a existência do Espírito Santo é imperdoável!
Eu disse quase à prova de falhas. Quase!
Um dos problemas da religião é que ela forma um "todo" indissociável das "partes". E nenhuma parte pode estar errada, senão, o todo está errado. Dito de outra forma: se a bíblia, por exemplo, é a transcrição literal da vontade de Deus, ela está certa em seu todo e em suas partes. Logo, nenhuma parte pode estar errada, sob o risco de suscitar o seguinte questionamento: "oras, se esta parte está errada, o que mais poderia estar errado? Será que não está tudo errado?"
Um exemplo prático: a famosa passagem do Levítico 18:22 que condena a relação homossexual dizendo: "com homem não te deitarás como se fosse mulher; é abominação".
E eis que emerge a perseguição aos homossexuais sob licença divina. Se está escrito na bíblia que é abominação, "não tem problema" na cabeça dos mais extremistas eventualmente espancar até a morte uma travesti, porque ela "merece", já que é "repulsivo" um homem se comportar como mulher. É a "vontade de Deus" matá-la!


Foto: Central M.O., acesso em 2017.
Travesti Dandara do Santos, 42 anos, espancada até a morte em Fortaleza (CE).
O crime aconteceu no dia 15 de fevereiro de 2017.

Ou não? Se não for a vontade de Deus, será que há algo mais naquele velho livro que não estaria equivocado?
Se há mais coisas erradas no "bom livro", quem teria escrito tudo aquilo? Com que intenção? Será que houve mesmo um pecado original cometido pelo mais famoso casal da cristandade, pai e mãe de toda a humanidade? Se tal pecado não teria acontecido, qual seria a função de Jesus Cristo? Morrer em sacrifício para expurgar os pecados dos seres criados à imagem e semelhança de Deus? Será que tudo isso não é invenção? Será que o próprio Deus não seria uma invenção?
Critical System Failure in the Matrix!
Foto: Matrix - System Failure, acesso em 2017.
Eu sei que você está ai. Eu posso senti-lo agora.
Sei que você está com medo. Você está com medo de nós.
Está com medo das mudanças.
Eu não conheço o futuro.
Eu não vim aqui pra te dizer como isso vai terminar.
Eu vim aqui te dizer como vai começar.
Vou desligar este telefone e mostrar a essas pessoas o que não quer que elas vejam.
Vou mostrar a elas um mundo sem você. 
Um mundo sem regras, limites ou barreiras.
Um mundo onde tudo é possível.
Uma falha crítica no sistema da Matrix! É o que ocorre quando a pergunta fatídica é feita. As pessoas que se perguntam isso e chegam a uma resposta "adversa", começam a questionar também por que se deve aceitar a ordem imposta segundo tais pressupostos. Ordem que permite, por exemplo, que pessoas morram de fome e inanição na África enquanto 1% da humanidade detenha metade da riqueza do mundo. Qual a lógica disso?
Não há. Se os 7,5 bilhões de habitantes da Terra tivessem os mesmos hábitos de consumo dos 5% – os estadunidenses – mais ricos, o planeta entraria em colapso. Por isso, é necessário que o maior percentual possível aceite sua condição como uma provação imposta por Deus para permitir, por meio da resignação penitente, a passagem para um mundo melhor.
E as "religiões erradas", aquelas contra as quais a cristandade entra em guerras santas, cumprem um papel fundamental na geopolítica mundial. Esse embate permite manter o mundo em permanente tensão, em permanente luta do "bem contra o mal".
O mesmo "bem contra o mal" maniqueísta que faz com que os "cidadãos de bem" se unam contra os "homens maus", bandidos que são pessoas inerentemente ruins, incorrigíveis, incapazes de conviver em sociedade. Estes devem ser simplesmente mortos. "Bandido bom é bandido morto": liberem, pois, o porte de armas para que o cidadão de bem se defenda, defenda a sua família, o seu Deus, a sua honra... Já sabemos onde isso vai parar, certo?
Toda vez em que alguém surge com um propósito que não seja excludente há um distúrbio no "equilíbrio natural" das coisas. Porque a própria sobrevida do sistema depende da manutenção da exclusão em larga escala. Em última análise, todos aqueles que se contrapõem a partes da lógica do sistema estão inexoravelmente contra todo o sistema. E devem ser duramente combatidos.
Para tanto é essencial criar uma vala comum onde são lançados aqueles com os propósitos de inclusão ao invés da segregação. Fácil! São todos esquerdopatas comunistas, adoradores de vagabundos, farsantes de direitos humanos defensores de bandidos, gayzistas, feminázis, imorais, pervertidos, depravados, pedófilos, fomentadores da promiscuidade que querem destruir os valores da família tradicional e, em última análise, impor o reino de Satanás contra Deus.


Foto: Huffpost Brasil, acesso em 2017.
"Performance La Bête que inaugurou a Mostra Panorama da Arte Brasileira, no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. O homem nu trata-se do artista carioca Wagner Schwartz e a obra era uma releitura da série Bicho, considerada um clássico da artista brasileira Lygia Clark".
(Texto: Huffpost Brasil).
Uma criança tocando a perna de um homem nu disparou o alarme moralista em todo o Brasil com a acusação de PEDOFILIA. Será?

Pronto! Resolvido! Personificou-se o "mal" ao qual se contrapor. Qualquer um que preencha qualquer um desses itens é a figura do mal. E contra esse mal devem-se criar personagens que encarnem heróis que venham a libertar o povo dessa terrível ameaça. É aí que surge a fase tática!
A fase tática consiste em eleger no médio prazo todos aqueles que se contrapõem à personificação do "mal". E toda a sorte de políticos e pseudocelebridades surgirão pegando carona nessa onda. Uns simplesmente por dinheiro, outros pelo dinheiro e pelo poder, mas sempre tem o componente "dinheiro" na história.
Explica-se, assim, porque grupos de jovens novos-liberais promovem ataques contra museus e apresentações que favorecem de certa forma a diversidade, ao passo que apoiam "não-políticos" empresários que abraçam um discurso cada vez mais conservador e moralista, enquanto vibram com a aprovação do ensino religioso confessional nas escolas públicas pelo Supremo Tribunal Federal e lutam pela aprovação do "Escola Sem Partido".
As duas mais eficientes formas de conscientizar a população são pela Educação e pelas Artes. Silenciem-se ambas e se manterá o povo cativo.


Foto: APES, acesso em 2017.
Escola Sem Partido! As duas mais eficientes formas de conscientizar a população são pela Educação e pelas Artes. Silenciem-se ambas e se manterá o povo cativo.